terça-feira, 27 de outubro de 2020

A DEMOCRACIA AMEAÇADA

 

               O regime democrático, imortalizado pelas palavras de Abraham Lincoln (1809/1865), o 16º presidente norteamericano, proferidas em seu famoso discurso de Gettysburg, em 19 de Novembro de 1.863, como sendo “Um governo do povo, pelo povo e para o povo”, recorda-nos uma data particularmente importante para os brasileiros, já que nela se realizam as comemorações pelo dia da bandeira, idealizada por Raimundo Teixeira Mendes, logo após a proclamação da República, proclamada e referenciada a cada novo dia 15 de Novembro e que, particularmente neste ano 2.020, precisa ser novamente defendida.

              Este regime, idealizado por Sólon na Grécia Antiga, para fazer frente às demandas citadinas de uma Atenas que começava a se fortalecer como potência político/militar e comercial nas terras áticas, ocupadas desde muito pelos helênicos (da tribo dos jônios), logo após a fracassada tentativa de criar um sistema de governo baseado em leis muito severas, elaborado por Drácon, foi implementado, no ano de 508 a.C., graças à ação de Clistenes (565/492 a.C.), que assumira o controle da cidade após derrubar a tirania de Iságoras, um aristocrata ateniense que tentava manter-se no poder, apoiado pelos espartanos.

              Na prática, apenas os homens atenienses, maiores de 18 anos, tinham o direito de participar na Assembleia dos cidadãos, também chamada Eclésia, o que excluía diversos grupos de pessoas que residiam na cidade, como as pessoas nascidas em outras cidades (encaradas como estrangeiros), as mulheres e os escravos (muitos dos quais eram atenienses que renunciavam aos seus direitos, como forma de pagar dívidas ou assegurar o sustento).

              Esse sistema de governo permaneceu notadamente estável e, apesar de algumas breves interrupções, permaneceu funcionando por 180 anos, até o ano de 322 a.C., principalmente graças aos esforços de Péricles (governante de Atenas entre 440 e 430 a.C.) que aprimorou seus conceitos, assegurando a isegoria (igualdade no direito de manifestação na eclésia), a isonomia (todos governados pelas mesmas leis) e a isocracia (todos com os iguais poderes políticos), transformados em traços fundamentais do regime democrático ateniense, em seu período de maior influência.

              Neste período, a democracia foi interrompida pela ação de um grupo oligárquico, liderado por Terâmenes, um político natural da Estíria, que ajudou a implantar, no ano de 411 a.C., o regime da Tirania dos Quatrocentos, deposto em 410 a.C., após a revolta da Eubeia.

              Novamente, após a Guerra do Peloponeso, onde Atenas foi derrotada em sua luta contra Esparta (gregos de origem dórica), o sistema de governo ateniense foi modificado, assumindo o controle da cidade, uma facção oligarca apoiada por Lisandro, um estratego e navarco espartano, que derrotou os atenienses em 404 a.C.

              A breve Tirania dos Trinta, cujo ícone histórico maior foi Crítias,  um discípulo de Sócrates, durou até o ano de 403 a.C., quando foi derrotada por Trasíbulo, apoiado pelo Rei Pausânias de Esparta, interessado em reduzir o poder de Lisandro.

              Restaurada a democracia, o próprio Sócrates (percebido como defensor da oligarquia) foi condenado à morte, acusado de corrupção dos jovens e de impiedade para com os deuses, um acontecimento marcante na vida de Platão, seu discípulo, que via nesse sistema de governo uma série de imperfeições.

              Platão, homem rico para os padrões da época, tecia críticas ao sistema tirânico (Crítias era seu parente) e à democracia, que para ele, dada a igualdade de direitos, quando mal governada, fatalmente se transformaria em anarquia.

              Platão reconhecia alguns valores do processo democrático (era contra o sorteio dos membros escolhidos para compor o governo), mas acreditava que, se algumas virtudes cardinais de sua filosofia moral (sabedoria, coragem, temperança e justiça) sendo evidenciados entre aqueles que poderiam ser  eleitos, a democracia poderia evoluir para uma verdadeira Politeia (um corpo citadino regido por leis), onde tanto os votos quanto as leis seriam contabilizados e promulgadas segundo os interesses do coletivo e não do interesse individual.

              Em seu livro A República, ele chegou a desenhar a forma como esta sociedade utópica (ele a chamava de paradigma dos deuses) poderia se desenvolver, com “cada um fazendo suas próprias coisas”, aquilo que tinha de melhor para oferecer à cidade, fosse o sapateiro fazendo sapatos, o comerciante os seus negócios ou o guardião cuidando de sua defesa, de tal sorte que, obedecendo a uma hierarquia consentida, todos pudessem usufruir dos benefícios da obediência reafirmando o Lótus Clássico, onde o homem se mostrava uma animal político.

              Após o fim do período clássico, Atenas, considerada o berço da civilização ocidental e da democracia, graças ao impacto de suas realizações culturais e políticas, foi dominada por povos estrangeiros (período da ascenção de Felipe da Macedônia, pai de Alexandre o Grande), recuperando, apenas parcialmente, alguma importância durante o domínio do Império Bizantino (330 a 1453 d.C.), durante o período das Cruzadas (séculos XII e XIII).

              Como podemos ver, desde que foi idealizada, a democracia nunca foi consenso e, por conta disso, sempre se viu ameaçada por aqueles que não conseguem enxergar seus méritos e virtudes, ou por aqueles que tentam dilapidá-la, mergulhando-a nos braços lodosos do vício, ávidos por alcançar o poder. Hipócritas que enganam, pérfidos que a defraudam, fanáticos que a oprimem, ambiciosos que a usurpam ou corruptos e sem princípios que abusam da confiança do povo. Inimigos da pátria e da humanidade, tiranos fascistas e déspotas de toda a ordem, lobos travestidos de cordeiros que a cada nova eleição tentam iludir a boa fé dos cidadãos de bem, escondendo as malversações que praticaram ao longo de sua vida pública ou como se ouvidos moucos não conseguissem ouvir o clamor de seus corações.

              A democracia está ameaçada.

              Ela sempre esteve.

              Cabe a nós, a cada um de nós, não nos furtarmos à nossa responsabilidade e, neste dia 15 de novembro, quando a eleição, em muitos locais será definida ainda no primeiro turno, exercer a nossa soberania, enquanto cidadãos livres, homens e mulheres, enfrentando novamente os desafios e perigos, comparecendo aos locais de votação, obedecendo às recomendações sanitárias, como o uso de máscaras, para afirmar, com o nosso voto, o desejo de construir uma cidade na qual nossos filhos possam crescer e prosperar.

              E dizer, para eleger um governo oriundo do povo, que trabalhe pelo povo e para o povo.

 

Professor Orosco