Desde muito
tempo atrás, em período que remonta ao início da civilização, os homens
estabeleceram regras para a divisão do trabalho em uma sociedade, utilizando a
moeda como instrumento mediador dos interesses.
Esta
prática milenar, que chegou aos dias atuais travestida sobre as mais diferentes
formas de contrato, regula em âmbito mundial as relações entre pessoas.
Paradoxalmente,
a ideia de estabelecer contratos para regular esta relação, cuja função principal
seria o de assegurar os interesses dos envolvidos, promovendo a ordem e a “concórdia”,
acabou por transformar-se na causa primeira dos conflitos entre os homens,
chegando às raias do assassínio e da guerra.
Uma observação
mais detalhada do assunto nos leva a considerar, sob diferentes ângulos, a
forma como estes contratos foram elaborados, os valores éticos e morais
envolvidos, as condições de liberdade asseguradas às partes contratantes para
fazê-lo, bem como o nível de informação sobre causas, efeitos e consequências do ato, demonstrando o
nível de consciência dos envolvidos, etc.
Como a gama
de relações contratuais é extremamente grande, vamos nos ater, por ora, somente
àquelas que, de alguma forma, envolvem questões de vida ou de morte,
considerando-se que, ao menos na condição individual, a vida é o bem mais
precioso e supremo que alguém pode ter.
Nas
relações tribais a defesa do grupo sempre foi uma das maiores preocupações,
fosse qual fosse a sociedade.
A formação
de quadros capacitados para promover a defesa do coletivo, de modo bem simples,
era aceita por todos e, de forma voluntária, os jovens se ofereciam para a
missão, inclusive como forma de alcançar a emancipação.
Como o
crescimento do número de pessoas treinadas para o combate, a possibilidade de
enfrentamento entre os diversos ajuntamentos humanos, pelos mais variados
motivos, tornou-se um fato histórico, demandando a cada dia, uma maior
profissionalização dos exércitos.
A guerra, e
com ela a escravidão dos derrotados, tornou-se frequente entre as nações e os
vencidos passaram a ser considerados espólios de guerra, propriedade (mercadoria)
dos conquistadores.
Como
mercadorias, os escravos passaram a ser valorizados por suas qualidades, que
iam desde a beleza física, sua capacidade reprodutiva, seu conhecimento intelectual,
sua destreza para realizar certos trabalhos ou mesmo pela sua experiência em
combate.
E dizer,
aqueles grupos, ou mesmo aquelas pessoas, que possuíam um significativo número
de moedas, tinham a possibilidade de comprar escravos e deles dispor conforme a
sua vontade.
A antinomia
do sucesso alcançado na conquista, retratada no isolamento dos vencedores,
forçou, naturalmente, que cada um, segundo o número de suas moedas, formasse
seu exército particular, seus guarda costas, seus centuriões.
Também, de
forma natural, como maneira de assegurar o comprometimento dos escravos com sua
segurança, os donos das moedas, cada um à sua maneira, procurava recompensar a
lealdade.
A oferta da
liberdade após algum tempo, recompensas materiais ou sexuais, moedas, etc.,
eram algumas das estratégias utilizadas.
Estas
recompensas, por sua vez, atraíam também outros homens, livres, que ofereciam
seus serviços a quem pudessem pagá-los.
A própria
manutenção dos exércitos passou a ser uma questão econômica.
Aos poucos,
a ideia da proteção do coletivo, de forma voluntária, patriótica, foi sendo
deixada de lado.
Diferenciando-se
dos gregos, os romanos ofereciam aos estrangeiros a oportunidade de serem
verdadeiros sócios numa res pública comum, exigindo deles, como contrapartida,
que lutassem pela cidade sempre que se fizesse necessário.
Os
cartagineses, receosos de perder o poder comercial que possuíam, frente a ideia
propagada pelos romanos da livre adesão, acabaram por declarar guerra contra
Roma.
O exército
de mercenários contratados por Cartago, lançado contra Roma, embora vitorioso
em muitos embates, acabou derrotado quando os romanos formaram um exército, sob
um comando único que, além das tropas treinadas, soube explorar a volatilidade
dos interesses pecuniários dos mercenários.
Esta
vitória sobre Cartago acabou por despertar o interesse através da conquista militar
entre os romanos que, após inúmeras campanhas, acabaram por conquistar o mundo
conhecido.
Com o
passar dos anos, desgastada por inúmeras campanhas militares, assolada por
constantes agressões de suas fronteiras por tribos bárbaras, Roma, a exemplo
dos cartagineses, vendo o número de seus jovens ser reduzido drasticamente,
viu-se obrigada a contratar estrangeiros para defendê-la.
Isto
maculou de tal forma sua imagem, que o próprio imperador Constantino ordenou a
mudança da capital do império para Bizâncio.
A ideia da
profissionalização dos exércitos, com quadros nacionais ou valendo-se de
mercenários, passou a ser uma questão puramente econômica.
Honra e
civismo, embora sempre invocada pelo dono das moedas, na prática foi sendo
abolida.
Abraham
Lincoln, durante a guerra da secessão americana, assinou naquele país, a
primeira lei de alistamento compulsório da União, que a Confederação, do sul,
já adotara.
Como moedas
são moedas, a lei facultava o direito a quem fosse convocado e não desejasse
correr os perigos da guerra, poder contratar outra pessoa para assumir o seu
lugar.
Constam
entre aqueles que pagaram substitutos para que combatessem em seu lugar os
nomes de J.P. Morgam, os pais de Theodore e Franklin Roosevelt Ed dos
presidentes Chester A. Arthur e Grover Cleveland.
Esta forma
de atuação, que revoltava muitos idealistas, sempre foi acompanhada de críticas
contundentes, a ponto de Rousseau, em uma de suas manifestações argumentar que:
“A partir
do momento em que um serviço público deixa de ser a principal atribuição dos
cidadãos, que preferem servir com o próprio dinheiro em vez de se engajar ara
servir, o Estado está prestes a ruir.”
De forma
tautológica, a própria França imortalizou a “Legião Estrangeira”, dando-lhe
características românticas e cinematográficas nos registros das campanhas que
realizou no norte da África.
Nos estados
modernos, onde a ideia da profissionalização das forças policiais já é aceita
pela maioria das sociedades, começa também a ser discutida a utilização de
estrangeiros nas forças armadas, a exemplo da nova Roma, que agora aceita
latinos e asiáticos, com vistos temporários, em suas fileiras para combater no
Oriente Médio, em troca da promessa da cidadania americana.
Os jovens
universitários estadunidenses não querem arriscar suas vidas para defender
petroleiras ou oligarquias árabes, preferindo pagar a outros jovens, do
terceiro, quarto e quinto mundos, para lutarem sem seu lugar.
Nos Estados
Unidos, a terceirização das Forças Armadas ganha a cada dia ares inovadores,
onde as empresas privadas como a Blackwater desempenham muitas atividades no
Iraque e no Afeganistão.
Organizações
privadas realizando tarefas do Estado, principalmente nas áreas da segurança,
da guerra e da espionagem, a exemplo dos folclóricos xerifes do western
americano, aceitas pelas sociedades onde os indivíduos preferem pagar para não
se envolver, só fazem banalizar a violência e desvalorizar ainda mais a vida
humana.
De certa
forma, como os donos dos escravos que faziam apostas e se divertiam vendo a
luta dos gladiadores, a maioria delas até a morte, hoje somos levados a gozar
dos mesmos prazeres, pagando para assistir a uma luta de boxe ou a uma
sangrenta exibição do UFC (Ultimate Fighting Championship), tão bem trabalhada
pela mídia.
Analisando
outro aspecto de uma relação contratual que envolve conceitos morais sobre vida
e morte, estudemos um pouco as questões relativas à compra de bebês.
Já há muito
tempo todos sabemos que existe um lucrativo mercado paralelo para a compra e
venda de órgãos para transplantes.
Quem tem
moedas sempre encontra alguém que, precisando delas, concorda em vender um Rim
ou outro órgão do qual possa dispor.
Existem
registros recentes de pessoas que concordaram em vender órgãos vitais, o que
lhes provocaria a morte, pela garantia de compensação financeira a filhos e
entes queridos.
Mas não
vamos aqui abordar este aspecto do comércio da vida que, embora importante,
foge à mensagem que desejamos transmitir.
Vamos falar
sobre “fertilização in vitro” e sobre barrigas de aluguel.
No ano de
1985, o casal William e Elizabeth Stern, impossibilitados de terem filhos,
contrataram Mary Beth Whitehead para gerar um filho deles.
Inseminada
com o sêmen de William, Mary Beth gerou uma menina de nome Melissa, a qual,
após o parto, recusou-se a entregar.
Após longa
batalha judicial, Mary Beth, que havia concordado inicialmente em receber U$ 10
mil pelo trabalho, mesmo sendo a produtora do óvulo que gerou Melissa, acabou
sendo condenada a entregar a criança ao casal Stern.
Este caso,
que causou grande comoção social, deu margem a que se elaborassem salvaguardas
contratuais onde, a fertilização in vitro, com óvulo e esperma doados por
outros inseridos em um útero alugado, retiram da gestante qualquer direito
sobre o bebê que vai nascer.
Com estas
garantias, os donos das moedas que, ao invés de adotar um órfão preferissem
gerar uma criança nova, tinham assegurado este direito.
A
fertilização in vitro, ao remover a relação tradicional entre óvulo, útero e
mãe, fez com que a gravidez de aluguel tivesse reduzida as possibilidades e
riscos legais que cercavam a gravidez por encomenda.
Atualmente,
mães de aluguem, em sua maioria de origens latina e asiática, nos Estados
Unidos, recebem algo como 20 e 25 mil dólares por gestação que, acrescidos das
despesas com o parto e das “taxas legais” cobradas, podem fazer com que o custo
do bebê chegue a 75 ou 80 mil dólares.
Num mundo
globalizado, com um produto tão valioso, a Índia legalizou o comércio da
gestação na esperança de atrair clientes estrangeiros.
Como
nenhuma característica genética da mãe de aluguel é transferida para a criança
gerada, isto se tornou um grande negócio.
Lá, uma
mulher que se proponha a servir de “barriga de aluguel” recebe algo como 4 e 7
mil dólares, muito mais do que receberia em 10 ou 15 anos de trabalho.
O custo
total para os compradores, raramente ultrapassa os 25 mil dólares, evidenciando
uma significativa economia.
Afinal,
moeda é sempre moeda.
Com o
avanço da genética, brevemente teremos uma produção seriada de crianças encomendadas,
todas com caracteres definidos previamente, como sexo, cor dos olhos, tipo de
cabelo e quem sabe até QI.
É só
questão de tempo.
A aporia
que desponta neste século XXI é tentar equacionar a resposta da pergunta
inicial.
Se não
definirmos um valor de hoje, poderemos ser ludibriados amanhã.
Professor Orosco