Caros
amigos e leitores.
É
com enorme preocupação, quase tristeza, que me vejo obrigado a reconhecer que nas
palavras escritas por José Mauro de Vasconcelos, utilizadas para encerrar uma
das obras de maior significado moral, dentre as muitas que tive a oportunidade
de ler, havia um caráter profético, premonitório e de alcance universal que,
tais quais as proferidas pelo ‘homem
louco de Nietzsche’, o próprio Zaratustra, (GC § 125) quando este se
dirigiu aos presentes no mercado, ou não foram corretamente compreendidas, ou
foram pronunciadas cedo demais, e dizer: ditas a ouvidos moucos. Classificado
como um livro de literatura infanto-juvenil, este opúsculo, de maneira muito
sutil e peculiar ao autor, nos convidava a fazer uma reflexão sobre os inconsequentes
encaminhamentos que damos às nossas vidas e a perceber os desdobramentos que
tais atitudes provocam, tanto para nós, quanto para aqueles que nos rodeiam.
Dito
isso, esse preâmbulo se justifica, a meu ver, para auxiliar a compreensão pelo
leitor, da análise que pretendo realizar, estruturada de uma forma
fenomenológica / dialética, sobre o momento particular que estamos vivendo, não
apenas nesta ‘terra brasilis’, mas de
caráter global.
Hoje,
mais uma vez, lendo nos periódicos de circulação diária a repetição contumaz de
notícias que outrora escandalizariam o mundo, mas que, dada a sua
reprodutibilidade, se tornaram banais em nossa sociedade, como o crescente
número de latrocínios, da violência gratuita ou de casos de corrupção, por
exemplo, atingindo tanto a esferas públicas quanto privadas, aqui ou no
restante do planeta, não posso deixar de pensar que “algo não vai bem” no caminho
que estamos trilhando, enquanto espécie humana. Os sucessivos escândalos denunciados,
assim como os recorrentes desvios de finalidades no uso de verbas públicas,
sejam eles nas áreas de saúde, educação e esporte, entre outras, quanto na
instituição Correios[1], apenas
para exemplificar autarquias de âmbito municipais, estaduais e federais, nos poderes
executivo, legislativo ou judiciário, ou ainda, os escândalos da FIFA, do
Comitê Olímpico Internacional, da Volkswagen apenas para evidenciar as últimas,
de caráter privado, evidenciam que o fenômeno é global e que não está restrito
a um modelo socioeconômico (um “ismo” qualquer)
ou a uma cultura particular.
Atitudes
antiesportivas como o “doping”, como
as da nadadora que segurou a concorrente pouco antes do final da prova, do
atleta que comparou a plateia mal educada aos defensores do nazismo, do judoca
que se recusou a cumprimentar o atleta de outra religião, dos nadadores que se
promoveram alegando haverem sofrido um suposto assalto, etc., sendo tomadas em
um evento que, teoricamente, deveria promover a união dos povos, demonstram que
o problema do “ethos”, compreendido
como o fenômeno constitutivo do homem, aquilo que o torna humano, que define o
seu agir e o que lhe permite viver em um ambiente com sentido, dando-lhe
projeção de futuro, não foi apreendido pela maioria dos indivíduos. Da mesma
forma, felizmente em menor monta, os violentos atentados contra a vida humana
como os praticados por terroristas que, embora mais impactantes e
significativos, por sua peculiaridade, valendo-se tanto de aviões quanto de
carros bomba ou até mesmo de caminhões para mandar uma mensagem que não pode
ser compreendida, no afã de demonstrar seu ponto de vista, xenófobo ou religioso,
não levam em consideração que o “echos”,
compreendido como casa, morada do homem como síntese lógica da “physis” e do “ethos”, que tenta conciliar o dilema da necessidade, da
universalidade e da racionalidade da razão com a liberdade na particularidade,
tem por essência, o respeito à diversidade; não fosse isso, não seria síntese.
De
qualquer forma, tentando não ser excessivamente digressivo nesta minha
explanação, tento defender a tese de que a fragmentação de nossa sociedade, que
trouxe consigo a fragmentação do conhecimento, do capital, das relações
humanas, também fragmentou a moral e os elementos de coalizão social que
sustentavam a nossa sociedade. As conquistas sociais e a liberdade individual
que alcançamos se por um lado são boas, por outro nos lançaram num mundo para o
qual não estamos preparados para viver. Um mundo para o qual a vida em “estado
de natureza” nos remete a uma “luta de todos contra todos”, onde o
individualismo campeia e o “se dar bem” não importando qual o caminho trilhado
para isso, ganha a cada dia mais e mais adeptos.
Para
muitos, o dano será permanente. Felizmente, não para todos.
No
auge da ditadura militar, num rompante de resistência, os operários em greve
contavam com a solidariedade dos demais trabalhadores que, inclusive, se
organizavam para prover-lhes alimentos e gêneros de primeira necessidade. Hoje,
quando vejo que a Mercedes Bens de São Bernardo do Campo já anunciou que vai
demitir mais dois mil funcionários, deixando claro que o movimento de
encerramento desta unidade fabril já está em curso, o que significa mais dez
mil demissões, no que está sendo seguida pela Ford, pela Volkswagen e outras
importantes indústrias da região, o que terá implicações nefastas para toda a
população do ABC paulista (a General Motors sozinha representa quase 40% de
toda a arrecadação de impostos de São Caetano do Sul), curiosamente, não vejo
os sindicatos e até mesmo as organizações sociais e a população em geral se
organizarem para fazer frente a esta adversidade, condenando-nos a repetir as
tragédias de algumas cidades americanas que simplesmente faliram ou se tornaram
fantasmas.
Lá
o povo é nômade; aqui é retirante. Tragédia igual.
AINDA
NÃO ANOITECERA e a notícia tinha sido confirmada. Parecia que uma nuvem de paz
voltaria a reinar sobre a nossa casa e nossa família. Papai me pegou pela mão e
diante de todos me sentou no colo. Balançou devagar a cadeira para que eu não
ficasse tonto. — Tudo passou, meu filho. Tudo. Você um dia vai ser pai e vai
também descobrir como são difíceis certos momentos na vida de um homem. Parece
que nada dá certo, provocando um desespero interminável. Mas agora, não. Papai
foi nomeado gerente da Fábrica de Santo Aleixo. Nunca mais vai faltar nada nos
seus sapatinhos na noite de Natal. Fez uma pausa. Ele também nunca mais ia esquecer
daquilo para o resto da vida. — Vamos viajar muito. Mamãe não precisará mais
trabalhar, nem suas irmãs. Você ainda tem a medalha do índio? Remexi os bolsos
e encontrei a medalha. — Pois bem, vou comprar de novo um relógio e colocar a
medalha. Um dia será seu... “Portuga, você sabe o que é carborundum?” E Papai
falava e falava sempre. Me fazia mal seu rasto barbado roçar no meu rosto. O
cheiro que escapava da sua camisa muito usada me fazia arrepios. Fui
escorregando pelos seus joelhos e caminhei para a porta da cozinha. Sentei-me
nos degraus e contemplei o quintal com o morrer de todas as luzes. Meu coração
se revoltara sem raiva. “Que quer esse homem que me pega no colo?” Ele não é
meu pai. Meu pai morreu. O Mangaratiba matou ele. Papai tinha me seguido e viu
que os meus olhos se encontravam de novo molhados. Quase se ajoelhou para falar
comigo. — Não chore, meu filho. Nós vamos ter uma casa muito grande. Um rio de
verdade passa bem atrás. Grandes árvores e tantas, que serão só suas. Você pode
fazer, armar balanços. Ele não entendia. Ele não entendia. Nenhuma árvore
deveria ser tão linda na vida, como a Rainha Carlota. — O primeiro a escolher
as árvores, será você. Olhei os seus pés, os dedos saindo dos tamancos. Ele
era uma velha árvore de raízes escuras. Era um pai-árvore. Mas uma árvore que
eu quase não conhecia. — Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de
Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá. Agarrei-me
soluçando aos seus joelhos. — Não adianta, Papai. Não adianta... E olhando o
seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto: —
Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja
Lima.
Professor Orosco
[1] O Correio é uma empresa
pública que mantém as prerrogativas de autarquia [do
Grego αuταρχία, composto de αuτός (si mesmo) e αρχω ( comandar),
ou seja, "comandar a si mesmo" ou "auto comandar-se”]