Realizando uma leitura rápida
da obra de Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, não pude deixar de perceber
nela um precioso trabalho antropológico, que tenta esclarecer a origem e o
desenvolvimento humano.
Segundo o autor, quando os
homens ainda não haviam galgado o status de “homo sapiens”, vivendo em um
estado animalesco, desenvolveram uma “religião doméstica” que começou a
organizar sua vida em comunidade.
Como consequência provável de
um gesto isolado de “amor” por um outro membro da espécie, do qual era próximo,
um homem, de maneira isolada, enterrou, pela primeira vez, um cadáver, evitando
que ele fosse devorado pelos outros animais.
Ao fazê-lo, criou um túmulo
sobre o qual, periodicamente voltava para lamentar a perda.
Diferentemente dos outros
animais, o homem aprendeu a produzir uma marca para identificar os locais de
seu interesse.
Cães, por exemplo, enterram
ossos, mas não registram (marcam) o local em que o fizeram e, por isso, passam
a vida procurando-os, cavando buracos por toda a parte.
Com a prática de periodicamente
voltar ao local do túmulo para venerar a memória do ente querido, acabou por
estabelecer residência próxima e fixou-se de forma sedentária.
Com o passar de gerações, este
comportamento se institucionalizou, também para os demais membros da espécie,
onde, no grupo, filhos enterravam os pais, em um túmulo “particular” que passou
a receber os membros da família e que, dado o amor fraternal existente entre
eles, quando vivos, criou uma espécie de devoção pelos ancestrais.
Neste processo, divinatório,
edificou ao lado da sepultura, uma lareira que simbolizava a proteção contra os
predadores e que representava a presença viva dos entes partidos.
A manutenção da chama acesa,
passou a ser uma prioridade entre os membros do pequeno bando (cada bando possuía
seu túmulo e sua lareira), já que simbolizava, além da proteção, a manutenção
da presença entre os vivos, daqueles que haviam falecido.
Esta tarefa, de manter acesa a
chama, acabou sendo delegada aos filhos e às mulheres que, sob a coordenação do
macho dominante, acabou dando origem à família e ao “Lar”.
Desta prática, percebe-se por
registros arqueológicos, que também era comum, dentre os grupos hominídeos
enterrar, junto aos corpos sepultados, objetos que se acreditava serem
necessários a esta nova fase de sua existência.
Também existem registros
arqueológicos de que, junto aos sepulcros, eram colocados alimentos, o que,
pode ter sido o momento precursor, pelo homem, do manuseio de sementes e do
surgimento, ainda que rudimentar, da agricultura.
Como a relação de homenagem e
culto aos mortos, que eles entendiam como presentes, estando apenas enterrados,
era realizada de forma diferente em cada pequeno bando, a sua realização passou
a ser privada, protegida por muros (possivelmente tanto a sepultura quanto a
lareira eram construídos dentro de cavernas), garantindo-se a sua
singularidade.
Assim, estabelecendo-se a “propriedade
privada” ao redor do túmulo e da lareira, protegida dos olhares e da
participação nos cultos de veneração, por parte de outros elementos,
construíram-se as demais dependências da “casa”.
As filhas, que não podiam
herdar, deixavam a casa paterna e abandonavam a religião doméstica dos pais,
passando a obedecer aos dogmas da religião doméstica do marido.
Como este conhecimento era
sagrado, o divórcio, por si, estava fora de cogitação.
Com o crescimento do número de
elementos no bando, o espaço passou a ser um problema e a solução encontrada
foi, mesmo preservando a religião doméstica, individualizada por grupo e família,
de aceitar-se a realização de cerimônias comuns, com pontos congruentes,
criando-se os cemitérios, onde cada grupo tinha seu túmulo e podia realizar seu
culto.
Surgiram, assim, as fratrias,
na língua grega, cúrias, na língua latina, que também cresceram e deram origem
às tribos e mais tarde às cidades, chegando às nações que conhecemos em nossos
dias.
A religião doméstica, a
genealogia do sangue nas famílias, a soberania patriarcal com o macho
transmitindo o nome aos descendentes, a manutenção dos túmulos e, de certa
forma, o culto aos nossos ancestrais, ainda presentes na maioria dos
ajuntamentos humanos, ainda que em maior ou menor grau, demonstra a
possibilidade de que o caminho descrito por Fustel de Coulanges retrate, ainda
que resumidamente, o desenvolvimento de nossa espécie, que teria começado por
um ato de amor.
Outro importante pensador da
modernidade, René Girard, aproveitando-se de parte deste pensamento,
desenvolveu uma teoria, “teoria mimética”, onde apresenta suas conclusões sobre
o pensamento religioso, como fomentador do desenvolvimento humano.
A teoria mimética, como o
próprio nome indica, refere-se ao movimento provocado pelo desejo do desejo,
característico de várias espécies, inclusive a humana.
Nesta condição, para explicar
melhor, um elemento qualquer, digamos sujeito A, deseja alguma coisa.
Ao perceber que o sujeito A
deseja esta coisa, outro elemento, um sujeito B, que sequer a havia percebido,
volta sua atenção para o mesmo objeto e passa, também a deseja-lo.
A percebendo que B também
deseja o objeto, aumenta seu interesse por ele.
B percebendo o aumento do
desejo de A, também aumenta o seu desejo.
Este movimento cresce
exponencialmente e, fatalmente, acaba em conflito.
A lutará contra B pela posse
do objeto e esta luta crescerá a tal ponto que o próprio objeto deixa de ser
importante, passando a vitória (eliminação do oponente) a ser o novo objeto da
disputa.
Como este efeito é contagioso,
um terceiro elemento, sujeito C, percebendo o conflito entre A e B, toma
partido e se envolve na disputa.
C poder sequer ter conhecimento
do objeto inicial e, mesmo assim, se envolve na contenda.
Como desejo e violência são
miméticos, atraem para o conflito todos os elementos do grupo.
Em pouco tempo, de A a Z,
todos lutam, uns contra os outros, numa “guerra de todos contra todos” (HOBBES,
Leviatã), sem que os motivos originais da disputa estejam presentes ou sejam
percebidos.
Neste momento, de guerra
total, onde todos se acusam, alguém, aleatoriamente, é identificado como o
causador da guerra.
Girard alerta para o fato de
que este alguém pode ser qualquer um, de A a Z.
Pelo mesmo processo de mimese,
todos os elementos do grupo se voltam contra ele, que passa a ser visto como o
causador da guerra e que, precisa ser eliminado para que a paz retorno ao meio.
Encontra-se o bode expiatório.
Uma vez sacrificado este
sujeito X, a paz retorna e o grupo cria, a partir do incidente, um mito, onde
este “Mecanismo Vitimário” é incorporado ao grupo e passa a ser reproduzido de
forma ritualística como forma de manter a lembrança do conflito e assegurar a
paz.
Cria-se uma cultura e uma
referência social.
Rene Girard é incisivo ao
colocar que este mecanismo vitimário, a luta que se originou pelo desejo de um
único indivíduo e acabou colocando todo o grupo em uma competição mortal,
ocorre aleatória e consistentemente.
A religião, então, acaba por
institucionalizar-se na reprodução destes ritos, que preservam o mito e a
lembrança de que o sacrifício deve ser feito para evitar o mal maior.
Com o tempo, este sacrifício
deixa de ser realizado entre os membros do grupo, sendo substituído por
estrangeiros ou mesmo animais.
Também, com o passar do tempo,
boa parte dos participantes do processo ritualístico perde o conhecimento do
mito ou do sacrifício original e, mimeticamente, reproduz a cerimônia, sem a consciência
das causas primeiras.
Segundo René Girard, este
processo é frequente e irreversível ao longo do desenvolvimento de nossa
espécie, existindo inúmeras situações históricas que corroboram sua explicação.
Ocorre que, embora aceitando
este processo animalesco que continua presente no homo sapiens, recorremos ao
mesmo preceito religioso para, utilizando o exemplo do bode expiatório, da vítima
sacrificada pelo bem da coletividade, demonstrar que este processo não é
irreversível e que pode ser evitado.
Falo do “Amor do Cristo”.
Um amor que não é carnal, mas
que defende, pelo amor ao próximo, de abdicar do seu desejo de posse,
reconhecendo o direito do outro ao objeto de sua vontade, o que quebraria este
círculo vicioso, já no seu nascimento.
Um amor como o do pai ou mãe que,
abrindo a geladeira para pegar uma fruta, ao perceber que só existe uma,
deixa-a para o filho, ainda que este não tenha manifestado o desejo de comê-la.
Sem ser ingênuo ou demagógico,
gostaria de colocar que, neste momento de crise, não precisamos elencar um bode
expiatório, para acabar com a guerra, já que, todos somos inocentes e culpados
e que ele poderia ser qualquer um, inclusive nós mesmos.
Como na canção da saudosa
dupla Dom e Ravel, “Só o amor constrói”, precisamos plantar flores para florir
nosso país e construir a verdadeira paz.
Professor Orosco
Referências
Bibliográficas:
COULANGES, Fustel de. A Cidade
Antiga. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2009
SIRIGONI, Ivanir. A Teoria
Mimética. São Paulo: UNIFAI