quarta-feira, 4 de maio de 2016

ENSAIO SOBRE O EXISTENCIALISMO SARTREANO

            Com o aumento da população humana na Terra, acrescido do adensamento demográfico nas regiões urbanas, em um planeta que sabidamente tem-se uma oferta finita de recursos, sejam eles hídricos, minerais ou mesmo de áreas agricultáveis, a escassez, como já alertava Thomas Malthus [1], torna-se uma certeza, ainda que seus efeitos possam ser mitigados pela tecnologia e que se dê a ela uma gradação diferenciada, segundo a região estudada.
A escassez é, de qualquer maneira, seja qual for a sociedade, a matriz abstrata e fundamental de todas as reificações das relações humanas.
                                                  (SARTRE, 1960, pg 243 apud BOECHAT, 2011, pg 310) [2]

            Esta escassez, cujo significado pode ser atrelado a um fator quantitativo, de oferta e procura, onde não há o suficiente para todos, é ainda agravada pela condição mimética do desejo de posse, que se dá quando os bens, tangíveis ou não, são insuficientes para atender simultaneamente a quantidade de indivíduos que os procuram.
            Uma ideia dessa escassez provocada pelo movimento mimético pode ser melhor compreendida, se tomarmos, por exemplo, os recentes lançamentos dos últimos modelos de I-Phones ou de Tablet’s realizados pelas fabricantes, que provocaram verdadeiras corridas às lojas para a aquisição de um produto que, na prática, agrega muito pouco para nossas vidas, principalmente quando comparados aos serviços já prestados pelos modelos anteriores, tidos agora como ultrapassados.
            Essa escassez que, se de um lado atua como força motriz para alavancar o desenvolvimento econômico, a oferta de segurança ou de produtos e serviços, razão primeira para a formação dos agrupamentos humanos, de outro lado, de forma paradoxal, também atua como elo desagregador ao evidenciar que ocorre pela presença do Outro, encarado como um oponente, um Mal [3], que dificulta nosso acesso aos bens desejados.
            Poderíamos, neste caso, a título de exemplo, observar o comportamento de um indivíduo que, estando atrasado para um compromisso, preso em uma fila de banco, vê passar em sua frente uma pessoa idosa, uma gestante ou um deficiente, despertando-lhe um desejo maniqueísta, ainda que reprimido, de que aquelas pessoas não existissem, ao menos naquele momento.

A partir do momento em que o vínculo de interioridade vem acompanhado do vínculo de exterioridade, aquele que se aproxima não é mais o Mesmo; ele é o Outro; é aquele que, para satisfazer suas necessidades, ameaça destruir minha existência.
(BOECHAT, 2011 pg. 312)

            Aliando-se ao conceito da escassez, vimos surgir no período pós medievo, o início de uma revolução tecnológica, de caráter mundial, mais acentuada na Europa, que rapidamente destruiu o sistema feudal reinante até então, substituindo-o por um sistema capitalista embrionário que também suprimiu o sistema de guildas. Artesãos sendo substituídos por aprendizes, homens por mulheres e crianças, a fragmentação do trabalho, visando o aumento da oferta de produtos e a redução dos custos de produção, tornaram-se regras a partir de então.
            A mecanização dos processos industriais associada à oferta de mão de obra que migrava do campo para as cidades, se de um lado oferecia as condições para alavancar a demanda de bens e serviços de forma quase que exponencial, de outro lado provocou a proliferação de guetos e o surgimento de favelas, onde as condições de habitação eram grotescamente ruins, trazendo como consequência uma série de endemias que vitimaram milhões de pessoas na Europa.
            Diante deste desafio, o de poder contar com mão de obra saudável para as fábricas, os operários contratados passaram a praticamente viver nelas, submetendo-se a jornadas laborais que muitas vezes se aproximavam das vinte horas diárias.
            Apesar de poucos exemplos, como os de Robert Owen [4], o pai do socialismo que, visando auferir melhor qualidade e preço nos produtos têxteis que fabricava, optou por oferecer melhores condições de trabalho e remuneração a seus operários, a maior parte dos empresários decidiu consolidar o tripé “Mão de Obra”, “Maquinário” e “Matéria Prima” como referência para o computo de custos e maximização dos lucros. O homem, assim como os produtos que fabricava, ganhou o status de mercadoria que, como tal, passou a ter sua força de trabalho negociada segundo as leis do mercado.
            Nestas condições, a exploração se dava em condições similares à escravidão e a alienação do proletariado que, ao mudar o mundo mudava a si mesmo, tornou-se tão intensa que os ares da revolta se insuflaram por toda a Europa.
            Apesar da violenta repressão policial sobre os insurgentes, o surgimento de uma corrente filosófica, emancipadora das classes oprimidas, inspirada no Iluminismo, na Revolução Francesa e, particularmente, no pensamento de Hegel [5], que via o homem como o protagonista da história, acabou se consolidando.

Uma filosofia se constitui para dar expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos. [...] É que uma filosofia, ..., nascida do movimento social, ela própria é movimento e morde o futuro:..., sob este aspecto, a filosofia caracteriza-se como um método de investigação e de explicação; [...] Toda filosofia é prática,..., a mais contemplativa; o método é uma arma social e política: o racionalismo analítico e crítico de grandes cartesianos lhes sobreviveu; nascido da luta, voltou-se sobre ela para esclarece-la; no momento em que a burguesia se empenhava em solapar as instituições do Antigo Regime, ele atacava as significações peremptas que tentavam justifica-las. [...]  Assim, a filosofia permanece eficaz enquanto vive a práxis que a engendrou, que a sustém e é por ela iluminada. Mas ela se transforma, perde sua singularidade, despoja-se de seu conteúdo original e datado, na medida mesmo em que impregna pouco a pouco as massas, para tornar-se nelas, e por elas, um instrumento coletivo de emancipação.
(SARTRE, 1979, pp. 9 – 11)  


            Surgia o marxismo, denunciando as relações de produção, onde os trabalhadores, de forma alienada não se reconheciam no produto de seu próprio trabalho, propondo sua libertação através da objetivação de si mesmos, e dizer: um movimento que visava tomar o homem concreto a partir de sua realidade objetiva, priorizando a ação (trabalho e práxis social) sobre o Saber.
            Para fazer frente ao que Gramsci [6] chamou de “Cultura Hegemônica Dominante”, onde os ideais da classe dominante se tornavam as ideias dominantes e, reconhecendo que os intelectuais, em sua grande maioria, tinham sido educados no humanismo burguês, a proposta defendida pelos que pregavam os ideais marxistas acabou, também, se transformando em uma ideologia, contrária à defendida pela classe dominante, detentora dos meios de produção, chamada por Marx [7] de “superestrutura”.

Minha afirmação de que os modos determinantes de produção e as relações de produção que lhes correspondem, em suma, de que “a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas sociais de consciência”, de que “o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e espiritual em geral”.
(MARX, 2013, pg. 157)
           
            Com isso, conforme declarado por Sartre “Os dirigentes do Partido temendo que o livre devir da verdade quebrasse a unidade de combate, enfraquecendo sua ideologia, colocaram a doutrina fora de seu alcance” (1979, pp.23-25) recusando-se a aceitar, em nome da universalidade e da totalidade, qualquer forma de subjetivação e, invertendo, na prática, o princípio heurístico que levaria a novas descobertas e à evolução, objetivando, assim, constituir-se aprioristicamente em um Saber absoluto que, inclusive, recorria ao terror para consolidar-se.
            Paralelamente, outra corrente do pensamento filosófico, proposta por Kierkegaard [8], a “filosofia da existência”, criticando fortemente o hegelianismo e levando em consideração o princípio criacionista do mundo, explorava as emoções e sentimentos dos indivíduos quando confrontados com as escolhas que a vida oferece, defendendo a importância de viver-se uma verdade que seja verdadeira para si, pela qual seja possível dar a vida e chegar à morte, admitindo que a existência humana tem por essência a autorrelação, onde tudo se processa numa relação que determina o modo do homem estar no mundo e, aonde, à medida que ele vai se desencantando das ilusões, próprias ao mundo dos sentidos, ele vai adquirindo mais consciência da existência de suas profundas contradições.
            Kierkegaard, nesta sua proposta filosófica, classificou a existência humana em três estádios: o estético, onde o indivíduo vivendo o instante, prisioneiro da imediaticidade e dominado pelos sentidos precisa tomar um “salto da decisão” passando para o estádio seguinte, o ético, onde tenta tomar posse de sua liberdade, pensa o instante voltado para o futuro, descobre-se capaz de transcender e é tomado pelo conflito entre as colocações éticas universais e suas disposições singulares onde a noção de dever é acompanhada pelo peso da escolha entre o bem e o mal. Neste estádio ele toma “consciência” de suas falhas e evolui passando para o terceiro estágio, o religioso, de forma livre de reflexão, compreendendo que o anterior não resolvia seus problemas existenciais.
            Nesta época, quase que sucedendo Kierkegaard, Brentano [9], amparado no pensamento de Hegel, para quem o fenômeno existe mesmo quando não aparece (exemplo da árvore que caindo, mesmo sem ser vista, produz barulho) o que contrariava o idealismo de Kant, procurando fazer da psicologia uma ciência, dedicou-se ao estudo da consciência, definida por ele como um ato ou fenômeno psíquico, objeto de nossa percepção interna, sempre verdadeiro e intencional.
            Este trabalho de Brentano serviu de base para que seu aluno Husserl [10], um dos fundadores da fenomenologia, para quem o fenômeno poderia ser classificado como uma experiência da consciência (entendendo-se que, para ele, consciência, como intencionalidade é sempre consciência de algo). Uma consciência que, como ser transcendente, embora imanente, estabelece uma relação com o objeto que está fora do corpo. Para ele, o importante era essa relação.
            Assim, compreendendo que a subjetividade é algo imanente ao sujeito, que está nele, na sua relação com o mundo, Husserl compreende o sujeito transcendental, o mundo interior ou consciência, o ser real e empírico que consegue imaginar-se fora, ao observar um objeto, onde sua consciência que está vazia, para poder observar o objeto, carrega neste processo um “eu que é só dele”. Um eu que faz a redução fenomenológica (epoché) de forma reflexiva, colocando o mundo entre parêntesis, suspendendo juízos e buscando alcançar a essência, aquilo que se repete quando o fenômeno se repete e aonde a condição de possibilidade de alcançar a verdade se faz presente.
            Husserl chama de “ato noético” aos atos que praticamos para perceber o mundo, as formas pelas quais a consciência se coloca para perceber o mundo e de “noema” a imagem correlata [11] correspondente ao objeto percebido, o significado que damos a ela, construído a partir de nossa necessidade, o que estabelece os nossos vividos intencionais, nossas relações da consciência com o mundo, cujos momentos, como que tijolos em uma construção, nos permitem alcançar, ou não, a construção da essência segundo o nosso interesse.
            Em sua obra A crise da Humanidade Europeia e a Filosofia, onde alerta para o problema de que toda ciência é, de certa forma uma ciência do ser no mundo, “do ser perdido no mundo”, Husserl nos chama a atenção para o fato de que o fenomenólogo precisa “perder o mundo” através da epoché, não podendo ser ingênuo, no sentido de aceitar axiomas como faz o cientista, para poder preservar o humano que constrói o mundo, na busca de evidências apodíticas. Um mundo da vida (Lebenswelt) no sentido de mundo experimentado pelo homem, constituído pela história, pela linguagem, cultura e valores.
            Seu aluno, Martin Heidegger (1889/1976), um filósofo alemão considerado um dos pensadores fundamentais do século XX, valendo-se do termo Dasein (o ser aí) num mundo de utensílios onde os significados dos objetos dependem de sua utilidade e seu sentido depende do contexto em que estão inseridos, quer pela recolocação do problema do ser e pela refutação da ontologia procurava não o conceito, mas o significado do ser que, para ele, só podia ser encontrado no ente humano, o único ser que pergunta sobre si mesmo.
            Heidegger afirmava que o único ente existencial é o ser humano, o único ser que se percebe como um ser existente, mergulhado no mundo, para quem as coisas estão presentes, existindo sempre com o Outro, que divide o mundo com ele, o Mitsein (ser com), onde o homem não é mais um ser isolado, mas um ser que se expressa pelo cuidado com o Outro.
            Voltando agora novamente ao Outro, consideramos importante registrar que a digressão que realizamos até agora, é importante, principalmente se levarmos em consideração que a obra fenomenológica de Sartre é baseada na filosofia de Husserl e de Heidegger onde, além do plano ontológico, ele se preocupa com a realidade do homem colocado no mundo.
            Sartre considera os seres do mundo como prontos e acabados, seres em si mesmo, à exceção do homem, um ser para si, que olha o mundo e volta-se para si mesmo. Um homem que, como afirmava Heidegger, é o único ente existencial, onde o existir é ter consciência de existir, uma consciência intencional que sempre busca alguma coisa.
            Um homem condenado a ser livre e cuja liberdade o transforma em único responsável por suas escolhas, ainda que exposto aos acasos de um mundo que não foi criado por ele.
            Como um ateu assumido, seu existencialismo se distancia de Kierkegaard, ao afirmar que a existência precede à essência, pois para ele o homem primeiro existe e depois se define, enquanto todas as outras coisas são o que são, sem se definir e, por isso, sem ter uma essência posterior à existência, ou seja: o existencialismo sartriano desconsidera a existência de um criador que tenha predeterminado a essência e os fins de cada pessoa.
            Acusado de subjetivismo pelos marxistas, Sartre defende-se, negando, embora não totalmente o determinismo e as ideias de universalidade e totalidade, que ignoram ser o homem, fruto dos seus vividos intencionais, aquele que dá significado ao mundo, afirmando que “entende por existencialismo uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda a verdade e toda a ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1970, pg 10).

A reflexão,para nós, não se reduz à simples imanência do subjetivismo idealista: só é um inicio se nos lança imediatamente entre as coisas e os homens. A única teoria do conhecimento que pode ser válida hoje é a que se funda sobre essa verdade da microfísica: o experimentador faz parte do sistema experimental. [...] Não colocamos a tomada de consciência na fonte da ação, vemos nela um momento necessário da própria ação: a ação se dá em curso de realização de suas próprias luzes. [...] A teoria do conhecimento, ao contrário, continua o ponto fraco do marxismo. Quando Marx escreve: “A concepção materialista do mundo significa simplesmente a concepção da natureza tal como ela é, sem nenhuma adição estranha, ele se faz olhar objetivo e pretende contemplar a natureza tal como ela é, absolutamente. Tendo-se despojado de toda a subjetividade e se tendo assimilado à pura verdade objetiva, passeia num mundo de objetos habitado pelos homens-objetos. Em contrapartida quando Lenine fala de nossa consciência, ele escreve: “Ela nada é senão o reflexo do ser, no melhor dos casos um reflexo aproximativamente exato”, e se rouba, ao mesmo tempo, o direito de escrever o que escreve. Nos dois casos, trata-se de suprimir a subjetividade:  [...] há no marxismo, uma consciência constituinte que afirma a priori a racionalidade do mundo (e que por esse motivo, cai no idealismo); esta consciência constituinte determina a consciência constituída dos homens particulares como simples reflexo (o que culmina num idealismo cético). Ambas as concepções resultam na ruptura da relação real do homem com a história, já que, na primeira, o conhecimento é teoria pura, olhar não situado e já que, na segunda, ele é simples passividade, nesta não há mais experimentação. [...] Somente então compreenderemos que o conhecimento não é conhecimento das ideias, mas conhecimento pratico das coisas; então poderemos suprimir o reflexo como intermediário inútil e aberrante. [...] Há duas maneiras de cair no idealismo: uma consiste em dissolver o real na subjetividade, a outra em negar toda a subjetividade real em proveito da objetividade. A verdade é que a subjetividade não é, nem tudo, nem nada; ela representa um momento do processo objetivo (o da interiorização da exterioridade). [...] A “consciência de classe” não é a simples contradição vivida que caracteriza objetivamente a classe considerada: ela é esta contradição já superada pela práxis e, por isso mesmo conservada e negada ao mesmo tempo.
(SARTRE, 1979, pp 31-32)
           

                        Sartre, para quem Marx partia da subjetividade, compreende o mundo vivido não como uma totalidade, mas como uma pluralidade e acusa o formalismo marxista de ser uma empresa de eliminação cujo método se identifica com o terror e pela recusa inflexível de diferenciar que suprime a integração e reflete uma prática de burocratas.
           
Mas os marxistas de hoje se conduzem como se o marxismo não existisse e como se cada um deles o reinventasse exatamente igual a ele mesmo em todos os atos de intelecção: eles se conduzem como se o homem ou o grupo ou o livro aparecesse a seus olhos sob a forma de “representação caótica do conjunto” (enquanto se sabe muito bem que tal livro, por exemplo, é de certo autor burguês, em certa sociedade burguesa, a certo momento de seu desenvolvimento e que todos estes caracteres já foram estabelecidos por outros marxistas). [...] Assim, a realidade concreta de uma obra filosófica será o idealismo: a obra não representa senão um modo passageiro dele; o que o caracteriza em si mesmo é apenas deficiência e nada; o que faz seu ser é sua redutibilidade permanente à substância: “o idealismo”. Daí uma fetichização perpétua.
(SARTRE, 1979, pg 46)


            Alerta para o fato de que os valores significativos construídos ao longo de uma existência são transmitidos aos herdeiros que, muitas vezes os tomam por uma espécie de idealismo. Momento em que eles perdem seu significado e se transformam em ideias abstratas, ideológicas, frágeis e que nada mais representam onde, por exemplo, a tolerância e o companheirismo desenvolvido na luta entre classes econômicas perdem boa parte de seu significado à medida que os herdeiros usufruem das conquistas dos pais, transformando-se, assim, em fetiche
            Contrariando os marxistas de hoje, que segundo ele só se preocupam com os adultos, Sartre defende que para a construção da independência do sujeito, desvelando-lhe o mundo e libertando-o da alienação do trabalho e da opressão do Capital, é necessário iniciar-se este processo emancipatório desde a infância, informando-os, por exemplo, o que fazem os pais, porque o fazem e qual o objetivo deste seu trabalho.
            Embora admitindo, como afirmava Gramsci, o poder hegemônico exercido pela superestrutura sobre o proletariado, Sartre, no desenvolvimento de uma postura existencialista e também marxista, reconhece que não há senão homens e relações reais entre homens e que, nesta condição especial, as características animais ganham peso (como explicitado pela Pirâmide de Maslow) onde as relações sociais, como construções abstratas, se deterioram.
            Nesse sentido, o existencialismo sartriano concede importante relevo a responsabilidade: cada escolha carrega consigo a obrigação de responder pelos próprios atos, um encargo que torna o homem o único responsável pelas consequências de suas decisões, onde cada uma dessas escolhas provoca mudanças que não podem ser desfeitas, de forma a modelar o mundo de acordo com seu projeto pessoal. Assim, perante suas escolhas, o homem não apenas torna-se responsável por si, mas também por toda a humanidade. Essa responsabilidade é a causa da angústia dos existencialistas.
            Essa angústia decorre da consciência do homem de que são as suas escolhas que definirão a sua essência, e mais, de que essas escolhas podem afetar, de forma irreversível, o próprio mundo. Uma angústia que vem da própria consciência da liberdade e da responsabilidade em usá-la de forma adequada, onde nós mesmos definimos nosso futuro, através de nossa liberdade de escolha.
            Porém, Sartre não se restringe em "justificar" a angústia dos existencialistas, fruto da consciência de sua responsabilidade, mas vai além, e acusa como má-fé a atitude daqueles que não procedem de tal forma, renunciando, assim, a própria liberdade.
            Sartre chama de má fé a tendência, inerente à condição humana, de fazer com que a consciência esqueça o nada que é seu fundamento, para identificar-se de alguma forma com o Ser. Assim, o homem crê que crê, ele se torna como um ser-crença, quando em verdade ele é consciência da crença. De acordo com o Sartre, a má-fé é uma defesa contra a angústia criada pela consciência da liberdade, mas é uma defesa equivocada, pois através dela nos afastamos de nosso projeto pessoal, e caímos no erro de atribuir nossas escolhas a fatores externos, como Deus, os astros, o destino, ou outro.
            Podemos dizer, então, que para os existencialistas a má-fé compreendia a mentira para si próprio, sendo imprescindível para o homem abandonar a má-fé, passando então a condição de ser consciente e responsável por suas escolhas.
            Ao fazer isso, o homem passa, invariavelmente, a viver num estado de angústia, pois deixa de se enganar, mas em compensação retoma a sua liberdade em seu sentido mais pleno. As outras pessoas são fontes permanentes de contingências e todas as escolhas   levam à transformação do mundo para que ele se adapte ao seu projeto, admitindo que cada homem tem um projeto diferente, e isso faz com que as pessoas entrem em conflito sempre que os projetos se sobrepõem.
            Sartre não defende como muitos pensam o solipsismo (a concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências), reconhecendo que o homem por si só não pode se conhecer em sua totalidade e que só através dos olhos de outras pessoas é que alguém consegue se ver como parte do mundo, que sem a convivência, uma pessoa não pode se perceber por inteiro, onde   "O ser “para-si” só é “para-si” através do outro".
            Finalmente, reconhecendo que o marxismo continua a ser a única antropologia possível, que deve ser ao mesmo tempo histórica e estrutural, Sartre afirma que somente quando a pesquisa marxista tomar efetivamente a dimensão humana como fundamento do Saber antropológico, o existencialismo não terá mais razão de ser.

Professor Orosco




REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

- ALVES, André. Fé & Angústia: Conceito de Má Fé na Filosofia Existencialista de Jean Paul Sartre. São Paulo: Fonte Editorial, 2015

- BOECHAT, Neide Coelho. História e Escassez em Jean Paul Sartre. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2011

- HUSSERL, Edmund. A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia.  Trad. Urbano Zilles. 2. Ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002

- MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I. Trad, Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013

- OROSCO, José Carlos. Euskadi. São Paulo: Jasa Produções, 2013

- SARTRE, Jean Paul. Questão de Método. Trad. Bento Prado Júnior. 4. Ed. São Paulo: DIFEL, 1979.
_____. L’Existencialisme est um Humainisme. Trad. Vergílio Ferreira. Paris: Les Éditions Nagel, 1970.
_____. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. 22. Ed. – Petrópolis: Vozes, 2013



[1] Thomas Robert Malthus (1766/1834) em sua obra Primeiro Ensaio¸ alertava para o crescimento em progressão geométria da população enquanto os recursos necessários para alimentava se dava em progressão aritmética.
[2] SARTRE, Jean Paul. Crítica da Razão Dialética.Tomo I, Paris: Gallimard, 1960/1985; BOECHAT, Neide Coelho. História da Escassez em Jean Paul Sartre.São Paulo: EDUC:FAPESP, 2011
[3] Segundo Sartre, em o Ser e o Nada, um Mal que recai sobre o Outro, no conflito ontológico das consciências (BOECHAT, 2011, pg 311)
[4] Robert Owen (1771/1858), um reformista social inglês é considerado um dos fundadores do socialismo utópico e do cooperativismo.
[5] George Friedrich Hegel (1770/1831), filósofo alemão que desenvolveu uma estrutura filosófica do Idealismo Alemão, baseado em um sistema dialético, melhor compreendido como tese, antítese e síntese.
[6] Antônio Gramsci (1891/1937) foi um jornalista, crítico literário e político italiano que formulou o conceito de hegemonia e bloco hegemônico onde o poder das classes dominantes sobre o proletariado e todas as classes dominadas dentro do modo de produção capitalista, não reside simplesmente no controle dos aparatos repressivos do Estado.
[7] Karl Henrich Marx ( 1818/1883) foi um intelectual revolucionário alemão, de origem judaica, fundador da doutrina comunista moderna.
[8] Soren Kierkegaard (1813/1855), filósofo dinamarquês que ajudou a trazer a filosofia de volta para a Terra, ao insistir que a subjetividade, a paixão, o compromisso e a fé, bem como os paradoxos que as acompanham, fazem parte da situação humana.
[9] Franz Brentano (1838/1917), filósofo alemão cujos trabalhos mais importantes eram voltados para a psicologia, definida por ele como ciência dos fenômenos psíquicos (para ele sinônimo da consciência).
[10] Edmund Husserl (1859/1938), astrônomo, matemático e filósofo alemão que entendia que, na lembrança, a consciência intencional realiza a façanha de tornar presente o passado, sem confundi-lo com um objeto que não deixa de estar presente, isto é, conservando ao mesmo tempo ser caráter passado.
[11] Imagem correlata porque o objeto permanece inalterado e o que muda é o significado que damos a ele.

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