Inquirido insistentemente por um amigo que me cobrava
um posicionamento acerca de tema tão complexo, mesmo reconhecendo a delicada
situação em que ele, sarcasticamente procurava me colocar, não tive alternativa
senão a de manifestar minha opinião, alertando-o de que não sou a pessoa mais
indicada para tratar do assunto, visto que sou homem, que jamais poderei
experimentar/vivenciar tal situação e que, minha participação no processo gestacional
de uma nova vida, hedonisticamente falando, foi-me muito prazerosa, pelo que,
minha imparcialidade para julgar ou emitir opinião sobre isto pode ser
considerada questionável.
Sob o aspecto antropológico, podemos afirmar que o
homem pertence ao reino animal, é vertebrado, mamífero, dotado de consciência e
possui longevidade quando comparado a outras espécies.
Graças à sua condição de ser
racional tem excelente capacidade de adaptação climática, tem sexo definido
(macho e fêmea) e ocupa o topo da cadeia alimentar.
Suas crias são geradas no ventre da
fêmea, na maioria das vezes com somente uma criança por vez, que nascem após a
trigésima sexta semana, sendo totalmente dependentes da mãe até alcançarem
aproximadamente dois anos de idade, quando, conforme Jean Piaget (1)
e Lawrence Kohlberg (2) iniciam o processo de construção do seu Eu
individual.
As questões sobre sua expectativa de
vida, em termos de longevidade, sobre a qualidade desta vida e até mesmo sobre
o direito que cada um tem de decidir sobre sua interrupção, suscitam temas como
aborto, eutanásia, pena de morte que, dada as consequentes questões morais
envolvidas, só contribuem para tornar o tema em questão, uma impossibilidade de
consenso entre os homens.
No século XX, com a melhoria das
condições sanitárias, com o aumento do volume de água potável oferecida às
populações, com a maior oferta de alimentos e com desenvolvimento da medicina,
a expectativa média de vida da população aumentou, embora tenha sido afetada
pelas duas grandes guerras, somadas a uma enormidade de conflitos menores,
igualmente sangrentos, de caracteres regionais.
Curiosamente, os homens que sempre
ficaram atrás das mulheres em relação à expectativa de vida, no início deste
novo milênio estão vivendo mais, chegando-se a prever para a metade do século
XXI a igualdade dos números médios.
Esta mudança se deve muito ao fato
da equiparação dos direitos entre homens e mulheres ocorridos no século XX,
onde as mulheres, emancipadas, dividiram e ocuparam espaços no mercado de
trabalho, alcançaram a paridade com os homens em quase todos os setores da
sociedade moderna e, em muitos deles, superaram-nos largamente.
Embora ainda existam locais no
planeta onde as mulheres não tenham assegurado este direito de igualdade aos
homens, é inegável que esta conquista está consolidada e que a cada novo dia,
amplia suas fronteiras.
John Stuart Mill (1806/1873),filosofo
e pensador liberal inglês, em sua obra “Sujeição das Mulheres”, já atacava o
argumento que dizia que as mulheres são naturalmente piores do que os homens em
certos aspectos e que, por isso, elas deviam ser desencorajadas e proibidas de
realizarem certos atos.
O princípio que regula as relações
sociais existentes entre os dois sexos, a subordinação legal de um sexo ao
outro, é errado em si mesmo, e, atualmente, um dos principais estorvos à
melhoria humana. [...] Não restam
escravos legais, com exceção das senhoras em cada casa. Sujeição
das Mulheres
Ele afirmava que se não se sabia do
que as mulheres são capazes, é porque os homens nunca as deixaram tentar, e que
não se podia fazer uma afirmação autoritária sem evidências.
Acreditava
que os homens da sua época não poderiam saber qual era a natureza da mulher
porque ela estava “empacotada” na maneira em que fora criada, induzida a agir
como se fosse fraca, emotiva e dócil.
Ele
atacava, também, as leis do casamento, que ele comparava à escravização da
mulher, defendendo uma reforma na legislação (a seu ver o casamento era
reduzido a um mero acordo comercial), e, em outra de suas propostas, apoiava
também a mudança das leis de herança, que permitiriam às mulheres manter suas
próprias propriedades e trabalharem fora de casa, ganhando independência e
estabilidade financeira.
Felizmente,
evoluímos ao ponto de perceber que homens e mulheres são iguais perante a lei,
livres em estado de natureza, e que “a maior das liberdades, a liberdade
natural do homem, consiste em poder dispor do seu corpo, como melhor lhe
aprouver”, independentemente de sexo, cor, etnia ou idade.
Hoje,
com o avanço da medicina e de outras
ciências, é inegável a oferta de produtos e serviços que propiciam melhoria da
qualidade de vida para os homens, principalmente nos países mais desenvolvidos.
Paradoxalmente, com este
desenvolvimento tecnológico associado ao sedentarismo, ao stress da vida
moderna, à poluição e ao consumo de alimentos industrializados, a saúde dessas
populações começa a declinar assustadoramente neste século XXI, aumentando de
forma exponencial os números de doenças, e consequentes óbitos, ligadas a
causas como obesidade, problemas respiratórios, etc.
Da mesma forma, devido ao gigantesco
crescimento populacional e à facilidade de locomoção oferecida por sistemas de
transporte cada dia mais eficiente, a miscigenação de tipos humanos diferentes
acaba por gerar novas doenças e deficiências, de origem genética, em número
igualmente significativo.
Este número de crianças geradas com
problemas genéticos, associado ao número dos casos de gravidez provocada por
violência sexual, traz o tema do aborto para um contexto atual.
Como fruto do meio, da alimentação, da
exposição ao Sol, as diferenças genéticas se acentuam, provocando diferentes
resultados sobre os humanos, sem, contudo, evidenciar superioridade de tipos
distintos.
No entanto, devemos ter ciência que
pouco mais de 15% do total da população mundial apresenta algum tipo de
deficiência, agravando sua condição de sobrevivência na maioria dos países
pobres onde uma considerável parcela de humanos vive em condições precárias e
não chegam a adquirir consciência de si mesmos, e dizer, não se reconhece como
pessoas.
A palavra pessoa tem origem no termo
latino que remete a uma máscara usada por um ator no teatro clássico.
Ao usarem máscaras, os atores davam
a entender que estavam representando um papel e, com o passar do tempo,
“pessoa” passou a designar aquele que desempenha um papel na vida, alguém que é
um agente.
John Locke (3) definiu
uma pessoa como “um ser pensante e inteligente, dotado de razão e reflexão, que
pode ver-se como tal, a mesma coisa pensante, em tempos e lugares diferentes”.
Essa definição aproxima “pessoa”
daquilo que J.Fletcher(4), queria dizer como “humano”, salvo pelo
fato de escolher duas características fundamentais: a racionalidade e a
consciência de si, como âmago do conceito.
Segundo Patrick Baert(5),
em “Algumas Limitações das Explicações da Escolha Racional na Ciência Política
e na Sociologia”, as mais importantes características das explicações da
escolha racional são:
a) A premissa da intencionalidade
b) A premissa da racionalidade
c) A distinção entre informação completa e incompleta e,
no caso da última, a diferença entre risco e incerteza.
d) A distinção entre ação estratégica e ação
interdependente.
As explicações intencionais não
estipulam apenas que os indivíduos agem intencionalmente, mas tentam dar conta
de práticas sociais fazendo referencia a finalidades e objetivos.
As explicações da escolha racional
são um subconjunto das explicações intencionais que atribuem, como o nome
sugere, racionalidade à ação social.
Racionalidade, neste contexto,
significa que, ao agir e interagir, os indivíduos têm planos coerentes e tentam
maximizar a satisfação de suas preferências ao mesmo tempo em que tentam
minimizar os custos envolvidos.
A racionalidade pressupõe a ideia
(premissa) de que o indivíduo é capaz de estabelecer um completo ordenamento das
alternativas.
Hoje, a ciência admite que os
golfinhos (delphins) são capazes de desenvolver atitudes intencionais e
atitudes racionais, promovendo-os junto com o homem ao status de pessoas.
Alguns filósofos têm afirmado que os
animais não são capazes de pensar ou raciocinar e, em decorrência disso, não
tem uma concepção ou uma consciência de si mesmos.
Vivem o aqui e o agora.
As
pessoas muito frequentemente têm apenas “informações imperfeitas” com respeito
à relação entre um conjunto particular de ações e seus resultados.
Enfrentando riscos, as pessoas são
capazes de atribuir probabilidades aos vários resultados, ao passo que,
confrontadas com situações de incerteza, não serão capazes de fazê-lo.
No interior da teoria da escolha
racional, a teoria dos jogos, que objetiva trabalhar, por meio de conceitos,
situações nas quais os indivíduos tomam decisões considerando as consequências
das decisões tomadas por outros, trata da formalização de escolhas estratégicas
ou interdependentes por meio da constituição de modelos ideais típicos.
Na definição que Fletcher usou para
o termo humano, ele compilou uma lista, que chamou “indicadores de humanidade”,
que incluía as seguintes características:
a) Autoconsciência
b) Autodomínio
c) Sentido de futuro
d) Sentido de passado
e) Capacidade de se relacionar com outros
f) Preocupação pelos outros
g) Comunicação
h) Curiosidade
Esta definição de características
humanas, na verdade deveriam ser consideradas como características de pessoas,
já que os golfinhos demonstraram possuí-las, ao mesmo tempo em que o embrião
humano, o feto subsequente, a criança com deficiência intelectual grave e até
mesmo o recém-nascido, todos indiscutivelmente membros da espécie Homo Sapiens,
não apresentam estas características, não podendo, portanto, ser consideradas
pessoas, muito embora potencialmente possam vir a sê-las.
É exatamente nesta possibilidade
potencial que reside a maior parte da argumentação contrária ao aborto.
No entanto, para uma avaliação
racional e desapaixonada da questão, precisamos considerar aspectos mais amplos
do que a simples manutenção da vida; aspectos como a qualidade desta vida em
questão, onde o “prazer” e “felicidade”, mesmo com carência de precisão,
remetem a algo que se vivencia, ou se sente, e dizer, a estados de consciência
fundamentais para o desejo de viver.
A vida, em suas múltiplas
definições, para poder ser compreendida e aceita como tal, fica condicionada à
demonstração de sua forma autônoma de manutenção.
Conforme John Stuart Mill
Poucas criaturas humanas consentiriam em ser
transformadas em qualquer um dos animais inferiores, caso lhes fosse feita a
promessa de viverem plenamente todos os prazeres de um animal; nenhum ser
humano inteligente consentiria em tornar-se um idiota, nenhuma pessoa instruída
aceitaria ser transformada num ignorante, nenhuma pessoa sensível e consciente
gostaria de tornar-se egoísta e vil, ainda que se conseguisse convencê-la de
que o idiota, o ignorante ou o tratante vivem mais satisfeitos com sua própria
sorte do que elas com as suas... É melhor ser um humano insatisfeito do que um
porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um idiota satisfeito.
E, se o idiota ou o porco tem opinião diferente, é porque só conhecem o seu
lado da questão. A outra parte da comparação conhece os dois lados.
Pergunta-se então, dentro de um aspecto puramente
utilitarista, qual o sentido prático de permitir o nascimento de um bebê, por
exemplo, com grave deficiência ?
Em uma visão plausível do
utilitarismo preferencial, uma vida deixa de valer a pena ser vivida, da
perspectiva da pessoa que a leva, e somente dela.
E dizer: considera-se como forma
autônoma de manutenção da vida, além da capacidade biológica de autorregulação,
o desejo manifesto de sua continuidade.
Platão e Aristóteles achavam que o
estado devia impor a morte aos bebês deformados e, por mais absurdo que possa
parecer, este tipo de pensamento se manteve vivo ao longo da história, muitas
vezes encoberto e travestido por outros argumentos, disfarçado por ideologias
que defendiam a “pureza da raça”, a superioridade de um tipo humano sobre
outro, etc., além de outras formas de racismo e preconceito.
Para nos aprofundarmos um pouco mais
no assunto, à luz da lógica, da ética e da moral, vamos diferenciar duas
situações distintas e reais para tratar esta questão: a vida potencial e a vida
real.
Alguns movimentos contrários ao
direito do aborto, quase sempre embasados em postulados teocráticos, levantam
questões sobre o momento da origem da vida, alegando, por exemplo, que a mesma
se iniciaria no momento da fecundação.
Parece até ser verdade que uma nova
vida humana começa a existir quando um espermatozoide humano se une a um óvulo
humano, pois a entidade que resulta daí, o zigoto, não parece ser idêntica nem
ao esperma, nem ao óvulo.
Ele carrega o potencial de
desenvolvimento, de multiplicação celular, de crescimento e de vida.
A mera possibilidade de que o zigoto
ou embrião possa se dividir em gêmeos mostra que não pode haver um único
organismo humano presente até o décimo quarto dia após a concepção, quando,
então, cessa a possibilidade de formação de gêmeos, tipificados como
univitelinos.
Pensar o contrário seria o mesmo que
afirmar que a cada nova divisão celular, onde, na morte da célula matriz que
gera duas novas células, estas deveriam ser consideradas organismos humanos
vivos, independentes.
Outras considerações necessárias de
serem feitas neste momento, antagônicas entre si, tratam dos fetos anencéfalos
e dos embriões bicéfalos, que frente às suas complexas características
biológicas, não trataremos, por ora, deixando apenas o registro de sua
existência.
Assim, até que o feto alcance a
capacidade de manter a vida (ao menos em suas funções vitais) sem a necessidade
da ligação umbilical com a mãe, não pode ser considerado um ser vivo, devendo
ser classificado como um ser com potencial de vida.
Neste contexto, não pode gozar da
proteção da lei como uma pessoa, o que ainda não é, muito embora possa vir a
sê-la.
Até a décima oitava semana de
gestação, o córtex cerebral de um feto humano ainda não está suficientemente
desenvolvido para que as conexões sinápticas ocorram em seu interior, e dizer,
em outras palavras, não são recebidos sinais que em um adulto, por exemplo,
dariam origem à dor.
Somente entre a décima oitava e a
vigésima quinta semana, o cérebro do feto humano atinge um estágio no qual
existe alguma transmissão nervosa nas partes associadas à consciência.
Desta forma, considerando-se que o
feto nestas condições possa ser classificado como uma espécie de apêndice da
mulher até o quinto ou sexto mês da gravidez cabe a ela, e somente a ela, a
decisão sobre a continuidade ou não do seu desenvolvimento, ou seja:
O aborto deve, portanto, ser
legalmente permitido, de forma facultativa, onde somente a mulher, de forma
livre e soberana, pode decidir se deseja ou não realizá-lo.
A própria Corte Suprema dos Estados
Unidos admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar nos
primeiros seis meses de gravidez.
Esse ponto de vista é muito aceito
pelos pensadores liberais, cujas origens podem ser atribuídas a Mill, que
defendia o ponto de vista de que, “em uma sociedade pluralista, devemos ser
tolerantes com os que defendem ideias diferentes das nossas e deixar a decisão
de fazer um aborto a cargo da mulher que está vivendo o problema”.
Muitos países já possuem, ou estão
criando, leis e regulamentos para o uso de tecido fetal de abortos, com base no
pressuposto de que é importante separar a decisão de abortar do uso do tecido
fetal, para que o uso deste não sirva para fomentar a incidência de abortos.
Já, uma criança nascida não é
potencialmente um ser vivo, é um ser vivo.
Como humano que respira,
potencialmente pode vir a tornar-se uma pessoa, fazendo desde o seu nascimento
o direito ao gozo da proteção da lei.
Neste ponto, na possibilidade de que
este ser vivo venha a se transformar em uma pessoa é que reside a discussão
sobre seus direitos, inclusive o direito de preservar ou abdicar da vida.
Somente um ser que consegue aprender
a diferença entre morrer e continuar vivendo pode optar autonomamente pela
vida.
Professor Orosco
_________________
(1) Jean William
Fritz Piaget, ( 1896/1980), foi um epistemólogo suíço, considerado um dos
maiores pensadores do século XX, desenvolveu a teoria do conhecimento com base
no estudo da gênese psicológica do pensamento humano.
(2) Lawrence Kohlberg,
(1927/1987) Psicólogo especializado
na investigação sobre educação e argumentação moral.
(3)
John Locke (1632/1704),filósofo e ideólogo do liberalismo, é
considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos
principais teóricos do contrato social
(4)
Joseph Fletcher (1905/1991)
teólogo protestante, foi um professor americano que fundou a teoria da ética
situacional na década de 1960, sendo pioneiro no campo da bioética. Foi um importante acadêmico envolvido nos
temas de aborto, infanticídio, eutanásia, eugenia e clonagem.
(5)
Patrick Baert (nascido em
1961) é um sociólogo belga, teórico social, baseado na Grã Bretanha onde atua
como professor de Teoria Social da Universidade de Cambridge.
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