sexta-feira, 27 de setembro de 2013

NÃO SOU A FAVOR DO ABORTO, MAS DEFENDO O DIREITO DE ABORTAR.


         Inquirido insistentemente por um amigo que me cobrava um posicionamento acerca de tema tão complexo, mesmo reconhecendo a delicada situação em que ele, sarcasticamente procurava me colocar, não tive alternativa senão a de manifestar minha opinião, alertando-o de que não sou a pessoa mais indicada para tratar do assunto, visto que sou homem, que jamais poderei experimentar/vivenciar tal situação e que, minha participação no processo gestacional de uma nova vida, hedonisticamente falando, foi-me muito prazerosa, pelo que, minha imparcialidade para julgar ou emitir opinião sobre isto pode ser considerada questionável.
            Sob o aspecto antropológico, podemos afirmar que o homem pertence ao reino animal, é vertebrado, mamífero, dotado de consciência e possui longevidade quando comparado a outras espécies.
            Graças à sua condição de ser racional tem excelente capacidade de adaptação climática, tem sexo definido (macho e fêmea) e ocupa o topo da cadeia alimentar.
            Suas crias são geradas no ventre da fêmea, na maioria das vezes com somente uma criança por vez, que nascem após a trigésima sexta semana, sendo totalmente dependentes da mãe até alcançarem aproximadamente dois anos de idade, quando, conforme Jean Piaget (1) e Lawrence Kohlberg (2) iniciam o processo de construção do seu Eu individual.
            As questões sobre sua expectativa de vida, em termos de longevidade, sobre a qualidade desta vida e até mesmo sobre o direito que cada um tem de decidir sobre sua interrupção, suscitam temas como aborto, eutanásia, pena de morte que, dada as consequentes questões morais envolvidas, só contribuem para tornar o tema em questão, uma impossibilidade de consenso entre os homens.
            No século XX, com a melhoria das condições sanitárias, com o aumento do volume de água potável oferecida às populações, com a maior oferta de alimentos e com desenvolvimento da medicina, a expectativa média de vida da população aumentou, embora tenha sido afetada pelas duas grandes guerras, somadas a uma enormidade de conflitos menores, igualmente sangrentos, de caracteres regionais.
            Curiosamente, os homens que sempre ficaram atrás das mulheres em relação à expectativa de vida, no início deste novo milênio estão vivendo mais, chegando-se a prever para a metade do século XXI a igualdade dos números médios.
            Esta mudança se deve muito ao fato da equiparação dos direitos entre homens e mulheres ocorridos no século XX, onde as mulheres, emancipadas, dividiram e ocuparam espaços no mercado de trabalho, alcançaram a paridade com os homens em quase todos os setores da sociedade moderna e, em muitos deles, superaram-nos largamente.
            Embora ainda existam locais no planeta onde as mulheres não tenham assegurado este direito de igualdade aos homens, é inegável que esta conquista está consolidada e que a cada novo dia, amplia suas fronteiras.
            John Stuart Mill (1806/1873),filosofo e pensador liberal inglês, em sua obra “Sujeição das Mulheres”, já atacava o argumento que dizia que as mulheres são naturalmente piores do que os homens em certos aspectos e que, por isso, elas deviam ser desencorajadas e proibidas de realizarem certos atos.

O princípio que regula as relações sociais existentes entre os dois sexos, a subordinação legal de um sexo ao outro, é errado em si mesmo, e, atualmente, um dos principais estorvos à melhoria humana. [...] Não restam escravos legais, com exceção das senhoras em cada casa.                                                                  Sujeição das Mulheres

            Ele afirmava que se não se sabia do que as mulheres são capazes, é porque os homens nunca as deixaram tentar, e que não se podia fazer uma afirmação autoritária sem evidências.
            Acreditava que os homens da sua época não poderiam saber qual era a natureza da mulher porque ela estava “empacotada” na maneira em que fora criada, induzida a agir como se fosse fraca, emotiva e dócil.
            Ele atacava, também, as leis do casamento, que ele comparava à escravização da mulher, defendendo uma reforma na legislação (a seu ver o casamento era reduzido a um mero acordo comercial), e, em outra de suas propostas, apoiava também a mudança das leis de herança, que permitiriam às mulheres manter suas próprias propriedades e trabalharem fora de casa, ganhando independência e estabilidade financeira.
            Felizmente, evoluímos ao ponto de perceber que homens e mulheres são iguais perante a lei, livres em estado de natureza, e que “a maior das liberdades, a liberdade natural do homem, consiste em poder dispor do seu corpo, como melhor lhe aprouver”, independentemente de sexo, cor, etnia ou idade.
            Hoje, com o avanço da medicina e de outras ciências, é inegável a oferta de produtos e serviços que propiciam melhoria da qualidade de vida para os homens, principalmente nos países mais desenvolvidos.
            Paradoxalmente, com este desenvolvimento tecnológico associado ao sedentarismo, ao stress da vida moderna, à poluição e ao consumo de alimentos industrializados, a saúde dessas populações começa a declinar assustadoramente neste século XXI, aumentando de forma exponencial os números de doenças, e consequentes óbitos, ligadas a causas como obesidade, problemas respiratórios, etc.
            Da mesma forma, devido ao gigantesco crescimento populacional e à facilidade de locomoção oferecida por sistemas de transporte cada dia mais eficiente, a miscigenação de tipos humanos diferentes acaba por gerar novas doenças e deficiências, de origem genética, em número igualmente significativo.
            Este número de crianças geradas com problemas genéticos, associado ao número dos casos de gravidez provocada por violência sexual, traz o tema do aborto para um contexto atual.
            Como fruto do meio, da alimentação, da exposição ao Sol, as diferenças genéticas se acentuam, provocando diferentes resultados sobre os humanos, sem, contudo, evidenciar superioridade de tipos distintos.
            No entanto, devemos ter ciência que pouco mais de 15% do total da população mundial apresenta algum tipo de deficiência, agravando sua condição de sobrevivência na maioria dos países pobres onde uma considerável parcela de humanos vive em condições precárias e não chegam a adquirir consciência de si mesmos, e dizer, não se reconhece como pessoas.
            A palavra pessoa tem origem no termo latino que remete a uma máscara usada por um ator no teatro clássico.
            Ao usarem máscaras, os atores davam a entender que estavam representando um papel e, com o passar do tempo, “pessoa” passou a designar aquele que desempenha um papel na vida, alguém que é um agente.
            John Locke (3) definiu uma pessoa como “um ser pensante e inteligente, dotado de razão e reflexão, que pode ver-se como tal, a mesma coisa pensante, em tempos e lugares diferentes”.
            Essa definição aproxima “pessoa” daquilo que J.Fletcher(4), queria dizer como “humano”, salvo pelo fato de escolher duas características fundamentais: a racionalidade e a consciência de si, como âmago do conceito.
            Segundo Patrick Baert(5), em “Algumas Limitações das Explicações da Escolha Racional na Ciência Política e na Sociologia”, as mais importantes características das explicações da escolha racional são:

a)    A premissa da intencionalidade
b)    A premissa da racionalidade
c)    A distinção entre informação completa e incompleta e, no caso da última, a diferença entre risco e incerteza.
d)    A distinção entre ação estratégica e ação interdependente.

            As explicações intencionais não estipulam apenas que os indivíduos agem intencionalmente, mas tentam dar conta de práticas sociais fazendo referencia a finalidades e objetivos.
            As explicações da escolha racional são um subconjunto das explicações intencionais que atribuem, como o nome sugere, racionalidade à ação social.
            Racionalidade, neste contexto, significa que, ao agir e interagir, os indivíduos têm planos coerentes e tentam maximizar a satisfação de suas preferências ao mesmo tempo em que tentam minimizar os custos envolvidos.
            A racionalidade pressupõe a ideia (premissa) de que o indivíduo é capaz de estabelecer um completo ordenamento das alternativas.
            Hoje, a ciência admite que os golfinhos (delphins) são capazes de desenvolver atitudes intencionais e atitudes racionais, promovendo-os junto com o homem ao status de pessoas.
          Alguns filósofos têm afirmado que os animais não são capazes de pensar ou raciocinar e, em decorrência disso, não tem uma concepção ou uma consciência de si mesmos.
            Vivem o aqui e o agora.
            As pessoas muito frequentemente têm apenas “informações imperfeitas” com respeito à relação entre um conjunto particular de ações e seus resultados.
            Enfrentando riscos, as pessoas são capazes de atribuir probabilidades aos vários resultados, ao passo que, confrontadas com situações de incerteza, não serão capazes de fazê-lo.
            No interior da teoria da escolha racional, a teoria dos jogos, que objetiva trabalhar, por meio de conceitos, situações nas quais os indivíduos tomam decisões considerando as consequências das decisões tomadas por outros, trata da formalização de escolhas estratégicas ou interdependentes por meio da constituição de modelos ideais típicos.
            Na definição que Fletcher usou para o termo humano, ele compilou uma lista, que chamou “indicadores de humanidade”, que incluía as seguintes características:

a)    Autoconsciência
b)    Autodomínio
c)    Sentido de futuro
d)    Sentido de passado
e)    Capacidade de se relacionar com outros
f)     Preocupação pelos outros
g)    Comunicação
h)    Curiosidade

            Esta definição de características humanas, na verdade deveriam ser consideradas como características de pessoas, já que os golfinhos demonstraram possuí-las, ao mesmo tempo em que o embrião humano, o feto subsequente, a criança com deficiência intelectual grave e até mesmo o recém-nascido, todos indiscutivelmente membros da espécie Homo Sapiens, não apresentam estas características, não podendo, portanto, ser consideradas pessoas, muito embora potencialmente possam vir a sê-las.
            É exatamente nesta possibilidade potencial que reside a maior parte da argumentação contrária ao aborto.
            No entanto, para uma avaliação racional e desapaixonada da questão, precisamos considerar aspectos mais amplos do que a simples manutenção da vida; aspectos como a qualidade desta vida em questão, onde o “prazer” e “felicidade”, mesmo com carência de precisão, remetem a algo que se vivencia, ou se sente, e dizer, a estados de consciência fundamentais para o desejo de viver.
            A vida, em suas múltiplas definições, para poder ser compreendida e aceita como tal, fica condicionada à demonstração de sua forma autônoma de manutenção.
            Conforme John Stuart Mill

Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em qualquer um dos animais inferiores, caso lhes fosse feita a promessa de viverem plenamente todos os prazeres de um animal; nenhum ser humano inteligente consentiria em tornar-se um idiota, nenhuma pessoa instruída aceitaria ser transformada num ignorante, nenhuma pessoa sensível e consciente gostaria de tornar-se egoísta e vil, ainda que se conseguisse convencê-la de que o idiota, o ignorante ou o tratante vivem mais satisfeitos com sua própria sorte do que elas com as suas... É melhor ser um humano insatisfeito do que um porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um idiota satisfeito. E, se o idiota ou o porco tem opinião diferente, é porque só conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação conhece os dois lados.

            Pergunta-se então, dentro de um aspecto puramente utilitarista, qual o sentido prático de permitir o nascimento de um bebê, por exemplo, com grave deficiência ?
            Em uma visão plausível do utilitarismo preferencial, uma vida deixa de valer a pena ser vivida, da perspectiva da pessoa que a leva, e somente dela.
            E dizer: considera-se como forma autônoma de manutenção da vida, além da capacidade biológica de autorregulação, o desejo manifesto de sua continuidade.
            Platão e Aristóteles achavam que o estado devia impor a morte aos bebês deformados e, por mais absurdo que possa parecer, este tipo de pensamento se manteve vivo ao longo da história, muitas vezes encoberto e travestido por outros argumentos, disfarçado por ideologias que defendiam a “pureza da raça”, a superioridade de um tipo humano sobre outro, etc., além de outras formas de racismo e preconceito.
            Para nos aprofundarmos um pouco mais no assunto, à luz da lógica, da ética e da moral, vamos diferenciar duas situações distintas e reais para tratar esta questão: a vida potencial e a vida real.
            Alguns movimentos contrários ao direito do aborto, quase sempre embasados em postulados teocráticos, levantam questões sobre o momento da origem da vida, alegando, por exemplo, que a mesma se iniciaria no momento da fecundação.
            Parece até ser verdade que uma nova vida humana começa a existir quando um espermatozoide humano se une a um óvulo humano, pois a entidade que resulta daí, o zigoto, não parece ser idêntica nem ao esperma, nem ao óvulo.
            Ele carrega o potencial de desenvolvimento, de multiplicação celular, de crescimento e de vida.
            A mera possibilidade de que o zigoto ou embrião possa se dividir em gêmeos mostra que não pode haver um único organismo humano presente até o décimo quarto dia após a concepção, quando, então, cessa a possibilidade de formação de gêmeos, tipificados como univitelinos.
            Pensar o contrário seria o mesmo que afirmar que a cada nova divisão celular, onde, na morte da célula matriz que gera duas novas células, estas deveriam ser consideradas organismos humanos vivos, independentes.
            Outras considerações necessárias de serem feitas neste momento, antagônicas entre si, tratam dos fetos anencéfalos e dos embriões bicéfalos, que frente às suas complexas características biológicas, não trataremos, por ora, deixando apenas o registro de sua existência.
            Assim, até que o feto alcance a capacidade de manter a vida (ao menos em suas funções vitais) sem a necessidade da ligação umbilical com a mãe, não pode ser considerado um ser vivo, devendo ser classificado como um ser com potencial de vida.
            Neste contexto, não pode gozar da proteção da lei como uma pessoa, o que ainda não é, muito embora possa vir a sê-la.
            Até a décima oitava semana de gestação, o córtex cerebral de um feto humano ainda não está suficientemente desenvolvido para que as conexões sinápticas ocorram em seu interior, e dizer, em outras palavras, não são recebidos sinais que em um adulto, por exemplo, dariam origem à dor.
            Somente entre a décima oitava e a vigésima quinta semana, o cérebro do feto humano atinge um estágio no qual existe alguma transmissão nervosa nas partes associadas à consciência.
            Desta forma, considerando-se que o feto nestas condições possa ser classificado como uma espécie de apêndice da mulher até o quinto ou sexto mês da gravidez cabe a ela, e somente a ela, a decisão sobre a continuidade ou não do seu desenvolvimento, ou seja:
            O aborto deve, portanto, ser legalmente permitido, de forma facultativa, onde somente a mulher, de forma livre e soberana, pode decidir se deseja ou não realizá-lo.
            A própria Corte Suprema dos Estados Unidos admitiu que as mulheres têm o direito constitucional de abortar nos primeiros seis meses de gravidez.
            Esse ponto de vista é muito aceito pelos pensadores liberais, cujas origens podem ser atribuídas a Mill, que defendia o ponto de vista de que, “em uma sociedade pluralista, devemos ser tolerantes com os que defendem ideias diferentes das nossas e deixar a decisão de fazer um aborto a cargo da mulher que está vivendo o problema”.
            Muitos países já possuem, ou estão criando, leis e regulamentos para o uso de tecido fetal de abortos, com base no pressuposto de que é importante separar a decisão de abortar do uso do tecido fetal, para que o uso deste não sirva para fomentar a incidência de abortos.
            Já, uma criança nascida não é potencialmente um ser vivo, é um ser vivo.
            Como humano que respira, potencialmente pode vir a tornar-se uma pessoa, fazendo desde o seu nascimento o direito ao gozo da proteção da lei.
            Neste ponto, na possibilidade de que este ser vivo venha a se transformar em uma pessoa é que reside a discussão sobre seus direitos, inclusive o direito de preservar ou abdicar da vida.
            Somente um ser que consegue aprender a diferença entre morrer e continuar vivendo pode optar autonomamente pela vida.

Professor Orosco
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(1) Jean William Fritz Piaget, ( 1896/1980), foi um epistemólogo suíço, considerado um dos maiores pensadores do século XX, desenvolveu a teoria do conhecimento com base no estudo da gênese psicológica do pensamento humano.
(2) Lawrence Kohlberg, (1927/1987) Psicólogo especializado na investigação sobre educação e argumentação moral.
(3)  John Locke (1632/1704),filósofo e ideólogo do liberalismo, é considerado o principal representante do empirismo britânico e um dos principais teóricos do contrato social
(4) Joseph Fletcher (1905/1991) teólogo protestante, foi um professor americano que fundou a teoria da ética situacional na década de 1960, sendo pioneiro no campo da bioética.  Foi um importante acadêmico envolvido nos temas de aborto, infanticídio, eutanásia, eugenia e clonagem.
(5) Patrick Baert (nascido em 1961) é um sociólogo belga, teórico social, baseado na Grã Bretanha onde atua como professor de Teoria Social da Universidade de Cambridge.


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