Durante quase toda a minha infância sempre ouvi
dizerem que aquilo que estava em moda na Europa, chegaria ao Brasil uma ou duas
décadas depois; que o produto lançado nos Estados Unidos, igualmente seria
comercializado por aqui, pelo menos uma década mais tarde. Embora esta distância
tenha sido reduzida, o que eu não sabia é que, não só nas mercadorias, mas nos
próprios princípios do desenvolvimento social, a distância entre continentes
era tão dispare.
Terminando agora uma leitura de uma
das obras de Norberto Bobbio, um senador vitalício italiano, mestre em
filosofia do direito e filosofia política, recentemente falecido (2004),
intitulada Qual Democracia?[1],
uma transcrição de uma conferência que ele realizou em 1959, na Brescia, uma
comuna italiana na região da Lombardia, tive a impressão de que ouvia suas
palavras, proferidas nos dias de hoje, em um seminário da PUC, da USP ou de
outro renomado centro acadêmico, por outro grande pensador político
contemporâneo, a exemplo de Celso Lafer[2] que prefacia o livro.
Nela, ele desmente a ideia de que a
democracia é um autogoverno do povo, esclarecendo que, em “todos” os Estados,
quem governa, quem toma as decisões, é sempre um grupo minoritário de pessoas,
ou representantes de grupos minoritários em concorrência entre si, o que
chamamos de “defensores dos interesses de classe”.
Esclarece, pedagogicamente, que,
entre a minoria dirigente e a maioria da população, o regime democrático pode
ser caracterizado, com relação ao regime autocrático, sobretudo por três
aspectos:
O primeiro, refere-se ao modo de
formação da classe dirigente, que justifica o seu poder a partir de um processo
eletivo.
O segundo, ligado e integrado ao
primeiro, é o de que a classe política eleita, o seja fundada num consenso
inicial originário, que precisa ser periodicamente repetido, e dizer, com
mandato não vitalício, com duração circunscrita e renovado por sucessivas
eleições, impactando na responsabilidade do eleito diante dos eleitores.
O terceiro aspecto referindo-se à
mobilidade da classe política, onde existe à disposição do eleitor mais de uma
agremiação partidária, com diferentes programas políticos, possibilitando uma
renovação do grupo que governa.
No entanto, como ele mesmo denuncia,
se aceitamos definir a democracia por meio desses três aspectos (princípio do
consenso popular, princípio da responsabilidade política e mobilidade da classe
dirigente), perceberemos que este regime se torna falacioso e utópico, se não
for acompanhado por profundas transformações sociais, como ele pormenoriza.
Para o primeiro aspecto, é preciso
compreender que entre o eleitor e o eleito, interpõe-se uma agremiação político
partidária, constituída por um seleto grupo de pessoas, que outorgam aos
candidatos, a autorização para competir no pleito eleitoral. Sobre estes, a
população, em geral, não detém nenhuma forma de controle e, conforme nos mostra
a experiência[3],
a outorga da legenda se dá por indicação das direções partidárias,
influenciadas por interesses nem sempre legítimos e onde, a composição da chapa
de candidatos leva em consideração sua capacidade econômica (acima do
compromisso ideológico) ou a sua capacidade de influenciar emocionalmente o
eleitor mais desinformado, onde é notório o convite e oferta das legendas a
artistas ou pessoas famosas.
No segundo aspecto, a relação de
responsabilidade que deveria existir entre eleitores e eleito, fica obstaculizada
pela interferência nas decisões políticas de um compacto e poderoso grupo de burocratas,
muitos deles gozando de estabilidade funcional. Este corpo de funcionários,
como registra Bobbio, à medida que cresceram as tarefas do Estado, ampliou
enormemente o seu poder, até o ponto de interferir direta ou indiretamente nas
decisões de governo sem, contudo, ter a responsabilidade pelos atos ou enganos
praticados. Apenas para exemplificar, a classe de professores, amparada por
seus sindicatos, a classe dos magistrados, policiais, médicos, etc., detém, via
mobilização e direito de greve, o poder de influenciar, modificar ou suprimir
qualquer tentativa de modificar o status quo, quer seja de forma programática
ou de redução de seus privilégios.
No terceiro aspecto, relativo à concorrência entre
as classes políticas diversas, como ele mesmo registra com relação à Itália da
época, o quadro é igualmente desolador.
Com
um elevado número de partidos políticos, a conquista do poder por uma única
agremiação se torna uma tarefa praticamente impossível, principalmente se
levarmos em consideração que as diferenças regionais, sempre gigantescas,
provocam demandas sociais muito díspares, o que reduz o peso ideológico das
propostas e aumenta o valor pragmático das ações propostas.
Neste contexto, partidos de vocação “centrista”,
ganham representatividade, uma vez que estão sempre aliados ao poder, seja ele
de esquerda ou de direita. Eu me atreveria a fazer um aparte aqui, apenas para
exemplificar, colocando neste contexto, aqui no Brasil, o PMDB[4] dos dias atuais, tão
heterogêneo quanto o próprio Brasil, capaz de manter em seus quadros lideranças
tão distintas quanto as atuais, onde de um lado temos o vice-presidente Michel
Temer e de outro, figuras como Renan, Sarnei, Cunha, etc.
Estes partidos, dada a sua
representatividade e permanência no poder, ganham, com o passar dos anos, uma
capacidade inimaginável de controlar a máquina pública e de ditar os destinos
da nação, independentemente de quem quer que tenha sido eleito, sem sofrer o
desgaste por políticas equivocadas que tenham sido implementadas, já que a
culpa do processo recai sempre sobre aquele que segura o cetro, não importando o
quão danosas elas tenham sido para o conjunto da sociedade.
Na Itália da época, assim como no
Brasil de hoje, quase ninguém se lembra do nome do ministro da agricultura, da
indústria, do desenvolvimento econômico, da educação ou da saúde de três
governos atrás, apenas para justificar o argumento.
Diante disso, Bobbio coloca como
alternativa plausível para que a democracia realmente funcione, um gigantesco
esforço para reduzir as distancias regionais, promovendo a homogeneização da
sociedade, principalmente em níveis educacionais e da quase obrigatoriedade de
reduzir o modelo representativo ao sistema parlamentarista onde apenas dois
grupos principais comandariam os destinos da nação.
Embora isto possa parecer uma
dicotomia, ele esclarece que, se assim fosse, estes dois grupos não poderiam
ter diferenças muito substanciais entre si, já que representariam
individualmente o conjunto da sociedade, sendo tão heterogêneos internamente quanto
a própria sociedade, e que, dada a impossibilidade de uma maioria esmagadora no
número de congressistas por qualquer deles, a síntese das políticas públicas se
daria, quase que inevitavelmente, como consequência da negociação aberta e
transparente entre eles, frisando que a estabilidade é a primeira condição de
eficiência para qualquer governo.
Bobbio alerta para o fato de que,
enquanto os partidos forem muitos, dada a necessidade de composição de forças o
regime democrático será sempre provisório, enquanto forem predominantemente
ideológicos, eles tenderão a transformar a livre adesão em obediência formal, a
persuasão em sedução e a participação ativa em disciplina passiva, o que se
traduz na produção de comportamentos deletérios para a vida democrática do
país.
Ele conclui, afirmando que a
democracia, como a mais perfeita forma de governo, ou pelo menos a forma mais
perfeita que os homens foram, até agora, capazes de imaginar, justamente por
ser a mais perfeita, é a mais difícil de ser alcançada e, por ser a mais
difícil, é a que provoca maior fadiga, pelo que o esforço para sua
concretização deve ser compartilhado por todos, igualmente empenhados em protege-la.
Professor
Orosco.
[1]
BOBBIO, Norberto. Qual Democracia?
Trad. Marcelo Perine. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2014
[2] Celso Lafer (São Paulo, 7 de
Agosto de 1941) é um advogado, jurista e professor, membro da Academia
Brasileira de Letras e ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro.
[3] É
importante frisar que Bobbio fala da Itália Pós Segunda Grande Guerra
[4]
Poderíamos aqui nos valer do exemplo de qualquer outra agremiação partidária,
como o PSDB, o PT, o PSD, o PPS, o PP, PV, PTB ou qualquer outro dos quase
quarenta partidos existentes no Brasil.
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