sexta-feira, 10 de junho de 2016

O SER PARA A MORTE EM HEIDEGGER

1 – INTRODUÇÃO

            Este trabalho tem por objetivo situar o problema do ser-para-a-morte em Martin Heidegger na perspectiva de uma investigação fenomenológica e existencial, onde pretendemos abordar os conceitos heideggerianos de Dasein, com seus modos de ser, (ser-de-angústia, ser-de-projeto e particularmente, ser-para-a-morte), com seus conceitos existenciais (Heidegger não se vale do termo conceito para os modos de ser do ser-ai, em suas abordagens, mas existenciais), determinado pela real possibilidade de finitude, que pode ser um caminho de encontro da autenticidade e também os conceitos de ser-no-mundo e ser-com-outro.
            Nosso propósito é abordar o pensamento heideggeriano a partir de Ser e Tempo, considerada a principal obra de sua primeira fase, no qual procuramos fazer uma leitura do ser-para-a-morte, entendida como uma possibilidade inevitável que permite que o existente possa projetar-se e abrir-se a uma existência autêntica.
            O ser-para-a-morte sabendo que a morte existe, vive intensamente, enfrentando a angústia e assumindo a construção da vida de forma autêntica, pensando sobre os acontecimentos e projetando-se no tempo sempre em direção ao futuro, com um olhar crítico sobre sua existência. E dizer, compreendendo que a angústia que o faz desperto para a possibilidade real da morte, entendida em seu caráter verdadeiro, como a última possibilidade de realização efetiva do homem, como completude da existência humana, quando tudo acaba e que sua existência não mais existe, permite que ele construa uma vida de forma autêntica, liberta para a possibilidade de uma existência como ser-no-mundo que vai levá-lo para a morte como um ser-de-projeto que é.
Fosse de forma inautêntica, o ser negaria a morte e a colocaria como algo distante, fugindo da angustia e recusando-se a refletir sobre os acontecimentos, mantendo-se como parte de uma massa confortavelmente alienada que critica a existência do outro e se esquece de sua própria.


2 – CARACTERIZAÇÃO PRÉVIA DOS CONCEITOS DE HEIDEGGER

            Neste tópico pretendemos examinar o conceito de Dasein que, conforme o próprio Heidegger registra significa, segundo a tradição, ser/estar presente, diante da mão (Vorhandenheit), existência[1] e que, segundo a tradução de Maria Sá Cavalcante Schuback[2], pode ser compreendido apenas como presença, dado o fato de que Vorhandenheit significar ser simplesmente dado, uma atualidade aí, obrigando uma compreensão ôntica do ser-no-mundo como circunstancialismo e situacionismo.
            Pretendemos, também, examinar os existenciais ser-no-mundo e de ser-com-outro, na medida em que estes três conceitos tem um papel fundamental no pensamento de Heidegger, recolocando a questão primordial de sua obra, a do “sentido do ser” que, segundo ele, ficou relegado a um segundo plano, condenado ao esquecimento pela metafísica ocidental.
           
2.1 – DASEIN
           
            Como o destino declarado da filosofia heideggeriana é o de erigir uma ontologia que se afasta da tradicional, do puramente subsistente (coisa) e que, partindo de uma compreensão vaga do ser permita ao menos interrogá-lo em busca de uma determinação plena do sentido do ser, ele aconselha um afastamento do conceito de ente em particular, enquanto este ou aquele, já que a diferença entre ser e ente não pode ser descrita, uma vez que ente se pode dizer que é e o Ser não se pode entificar para dizer o que é.
            Para apresentar uma prova de que a abertura até o ser, através da existência humana por um caminho possível, Heidegger recorre a uma nova linguagem, valendo-se do conceito de Dasein, uma resultante de dois elementos, uma palavra composta, onde “Da” significa “ai” e “sein” significa “ser”, entendendo que o “ser-ai” é um ente privilegiado, um ente para o qual o ser se torna uma questão, um ser que lida em essência, com o fato de ser, um ser que sendo, coloca para si mesmo a questão do ser.
            Para Heidegger, a filosofia tradicional canaliza a investigação do ser para uma antropologia, onde a metafísica ignora o que separa o ser e o ser dos entes, tendo a esperança ilusória de elevar o valor, a ideia acima do ser, um equívoco que para ele permeia toda a tradição filosófica ocidental, começando por Platão que dissocia o ser do homem, colocando-o no mundo das ideias e se estendo até Nietzsche que se perde ao criar um super-homem que decide soberanamente a história da verdade. Assim, no seu entender, desde os gregos, o pensamento não teria distinguido adequadamente a diferença entre ente e o ser, entre o que existe simplesmente como uma coisa e entre o que é enquanto ser.
            Para tentar explicar melhor este pensamento tradicional, que Heidegger renega, faremos abaixo uma breve consideração sobre o que se entendia por ser:
            Partindo de uma análise da linguagem, podemos dizer que o infinitivo português "ser" pretende traduzir o particípio substantivo grego "tò ov" ou o particípio latino "ens", "ente", ou, de modo mais preciso ainda, "alguma coisa que é".   O ser é, portanto, alguma coisa que tem por determinação própria ou por atualidade o existir.
            Para compreender melhor este conceito, comecemos por estudar Parmênides, filósofo grego, natural de Eléia, uma cidade cujas ruínas encontram-se na região de Salerno, Itália, que viveu aproximadamente entre 530 e 460 a.C., com quem teria nascido aquilo que chamamos ontologia, o conhecimento do ser. Ele teria, em sua obra, formulado pela primeira vez os dois princípios lógicos fundamentais do pensamento:
            - o princípio de identidade: o ser é o ser e
            - o princípio da não contradição: se o ser é, o seu contrário, o não ser, não é.
            Em seu poema "Sobre a Natureza", que introduziu o hábito de expor argumentos, conclusões calcadas em premissas, ele descreve de forma metafórica uma experiência de renúncia e de revelação, apresentando como conteúdo principal, aquilo que foi revelado, a via da verdade.  Neste poema ele explora dois possíveis caminhos para que se possa encontrar a verdade onde, no primeiro, o homem deixando-se levar pela razão, é levado à evidência de que "o que é, é, e não podia deixar de ser". No segundo caminho, a via da opinião, pelo fato de se atentarem para os fatos empíricos (baseados apenas na experiência), pelas informações obtidas através dos sentidos, o homem não chegaria à verdade e à certeza, permanecendo preso no nível instável das opiniões. Neste poema, ele associa o caminho da verdade, da razão, à luz do dia, onde a luz desnuda o mistério e, em contraponto, associa o caminho da opinião à noite, cuja escuridão esconde a realidade e nos induz a imaginar e a mistificar.
            Platão, por sua vez, exemplificando que a essência (o conceito) de cão nada tem a ver com qualquer cão determinado, consistindo no elemento ideal (eidos) presente em todo o cão, que não é perceptível pelos sentidos, apenas discernido pelo intelecto, deu a isso o nome de ideia, entidade de um mundo metafísico, puramente inteligível.
            Na sequência, para tentar compreender melhor o ser, recorreremos a Aristóteles e ao seu quadro lógico das oposições, um diagrama em que cada uma das quatro proposições do sistema está relacionada às outras três.



            Observando este quadro, compreendemos melhor o sentido de extensão das coisas, partindo dos universais (todos/nenhum) para os particulares (alguns), onde, de maneira bem simples, podemos observar que os particulares estão sempre subordinados, contidos, nos universais, no todo. Com este conhecimento, fica muito simplificado o processo de compreensão dos conceitos de gênero e de espécie, esta última, contida no gênero, que tem sempre um caráter de maior extensão.
            Explicando melhor:
            Poderíamos dizer que no gênero dos viventes, encontra-se as espécies animal e vegetal. Também poderíamos dizer que no gênero animal, encontram-se as espécies racional e irracional e, dentre os racionais, o homem.  Homem, aqui, não é espécie, pois não existe outro animal racional. A humanidade teria uma extensão maior do que homem. Poderíamos dizer espécie humana, da qual um homem qualquer, pode ser considerado, apenas, um acidente. Uma cor, por exemplo, é sempre um acidente, já que é uma particularidade da coisa em si, daquilo que é, do ser.
            Os gregos tinham uma palavra, ειδος, "Eidos", para designar "aquilo que faz uma coisa ser o que ela é", que nós, de maneira equivocada ou simplista, costumamos chamar de essência. Explicando melhor, quando dizemos mesa, não importando o idioma; não importando sua cor, formato ou tamanho, todos compreendemos o significado. Todos temos uma ideia do "eidos" da mesa, que só se concebe mediante a existência da própria mesa. Este eidos é a causa da coisa. Nós, pelos sentidos, quando vemos uma coisa, vemos apenas uma parte da causa da coisa, aquilo que é percebido pelos sentidos.  Não vemos, por exemplo, o artífice que construiu a mesa ou a árvore da qual se extraiu a madeira de sua construção, e ambos, também, são causas da coisa.
            Na metafísica (além da física) e, mais particularmente em Santo Tomas de Aquino (1225/1274), para simplificar este processo de entendimento do ser, adotou-se uma espécie de escala, que nos auxilia na compreensão tradicional do ser.
            1 - O de menor extensão, aquilo que vemos, uma essência já manifesta em sua definição; que já foi definida, que chamamos "quididade". Por exemplo, a humanidade do homem; a animalidade dos animais.
            2 - Com extensão um pouco maior, a "essentia", uma substância conhecida, que pode ser definida, o que determina a coisa ser o que ela é, seu eidos, por exemplo, vivente.
            3 - Uma extensão maior ainda, a "entia", um modo genérico de falar substância, uma unidade ontológica à qual se pode dar uma definição, mas que ainda não foi definida.  A substância, ideia ou forma, já está além dos sentidos, encontrando-se no intelecto, na razão, na reflexão. Por exemplo, o conceito das formas geométricas.
            4 - O "esse", às vezes traduzido por "ser", mas que se refere ao "ato de ser", pela sua atualidade, da possibilidade, do ser enquanto ser. A mesa é um esse; a porta é um esse; são o que são, no ato de ser.
            5 - O "ens", "ente", que diz respeito ao "que é".  A inteligência do homem só existe fora dele mesmo; ela precisa do mundo sensível para que o intelecto funcione.
            6 - E finalmente, o "ens per se", "o ente por si", o "Ser", que é causa de si mesmo, aquilo que chamamos Deus.
            Como conclusão deste pensamento filosófico tradicional, metafísico, podemos, então, dizer, que o ser está na coisa e que também está no intelecto, e que está, também, além do intelecto. Inicialmente, no pensamento do artífice, depois, manifesto em sua obra, permanecendo em ambos enquanto existirem.
Heidegger, discordando desta sequência Tomista que tomava o ser com pressupostos não explicitados e sempre dados como evidentes (por exemplo, verdade, razão, belo, etc.), considera ente todos os objetos, todas as pessoas e em certo sentido o próprio Deus, onde o ser do ente não se identifica com nenhum destes entes, nem sequer com a ideia de ser em geral, mantendo o ser do ente como objeto da Ontologia e deixando os entes para o campo das investigações das ciências ônticas. E dizer, reconhecendo que a metafísica define o ser como o mais universal de todos os conceitos, indefinível e evidente, o que não nos dispensa de procurar o seu significado, ele propõe, partindo da ideia de analisar o ser ôntica-ontológicamente, analisar os modos de ser do “ser-ai”, buscando uma ontologia fundamental que investigue o ser em geral, desconstruindo a metafísica e elaborando uma analítica da finitude, tendo por ponto de partida uma fenomenologia hermenêutica das estruturas fundamentais do “ser-ai”, e não um agrupamento de entes.
Desta forma, o Dasein, como ente privilegiado, um ente que se projeta para o futuro e que é capaz de questionar o ser, possui uma compreensão do ser, onde a compreensão é “ser-ai”, que para existir compreende o seu ser e o ser dos entes que vem ao seu encontro. Para Heidegger, existir é uma forma de compreender, e a palavra compreender expressa uma necessidade de estabelecer uma relação com o que a coisa tem de mais profundo, na origem do seu ser, como por exemplo: escutar o ser e compreender a origem do seu silêncio, um noema da fé, ou do amor, da raiva, etc. Ou seja, o Dasein é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, junto com os demais entes, que tem como tarefa explorar as conexões das estruturas que definem sua existência, qual sejam, os existenciais (por exemplo: amor, fé, etc.), já que o único lugar onde se pode encontrar o significado do ser, é no ente humano, cujo ser é ser-humano, o único ente que pergunta sobre si mesmo, sobre o seu ser.
  
2.2 – SER-NO-MUNDO

            O Dasein, como existente, percebe que se encontra situado em um contexto de vivência em mundo dado, cujos entes se apresentam perante ele de forma dada, (Vorhandenheit), quer seja em termos de espaço físico, de cultura ou de valores. Um mundo no qual ele está inserido, que o desafia e que precisa ser conhecido e enfrentado. Um mundo no qual ele foi lançado de forma não planejada, mas que precisa habitar, em uma existência que não pediu.

           A expressão composta “ser-no-mundo”, já na sua cunhagem mostra que pretende ... referir-se a um fenômeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem esta constituição. [...] O “em-um-mundo”; com relação a este momento, impõe-se a tarefa de indagar sobre a estrutura ontológica de “mundo”. E determinar a ideia de mundanidade como tal. O ente que sempre é, segundo o modo de ser no mundo.[...] O ser-no-mundo é, sem dúvida, uma constituição necessária e a priori da presença, mas de forma nenhuma suficiente para determinar por completo o seu ser. [...] Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo de ser-em, com sua presença, já se lhe houver sido descoberto um mundo. [...] Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como ser simplesmente dado. (HEIDEGGER, 2012, pp 99-105)                               

            E dizer, o homem é um ser mergulhado no mundo, um ente para quem as coisas estão presentes, cujos objetos são inseparáveis do “ser-ai”, cujo significado depende de sua utilidade (Zuhandenheit).

O modo de ser médio e quotidiano do homem, de que decidimos partir, apresenta-se, antes de mais, como ser-no-mundo. [...] Que as coisas sejam antes de mais instrumentos, não quer dizer que sejam todas meios que empreguemos efetivamente, mas sim que coisas se nos apresentam, antes de mais nada, dotadas de certo significado relativamente à nossa vida e aos nossos fins. [...] O homem está no mundo sempre como ente referido às suas próprias possibilidades, isto é, assumindo-as, num sentido amplo, como instrumentos. [...] A simples-presença revela-se aqui como um modo derivado da prestabilidade e da instrumentalidade, que é o verdadeiro modo de ser das coisas. (VATIMO, 1996, pp. 26-29)


2.3 – SER-COM-OUTRO

            Como pudemos constatar, o “ser-ai”, que se revela em sua primeira manifestação como  um ser-no-mundo (in-der-wet-sein), um ser que se projeta nele deixando-se absorver pelos entes que vêm ao seu encontro de uma forma permanente e em construção, acaba por constituir-se por suas relações com o ambiente de coisas e de pessoas, em um mundo que também se manifesta e que não se apresenta apenas como instrumentos ou objetos, mas como outros entes, outros Dasein, outros seres-aí, o que Heidegger denomina ser-com (mitsein), estar-aí (mitdasein) e seres-com-os-outros (miteinandersein), de onde surge a compreensão, a interpretação, o discurso e a linguagem, tudo ao mesmo tempo, juntos e de forma não sequencial.
           
O mundo da presença é um mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é copresença. O encontro com os outros... vêm ao encontro a partir do mundo em que a presença se mantém, de modo essencial, empenhada em ocupações guiadas por uma circunvisão. [...] Esse modo de encontro mundano mais próximo e elementar da presença é tão amplo que a própria presença nele, de saída, já “encontra” a si mesma, desviando o olhar ou nem mesmo vendo “vivências” e “atos”. A presença encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda. [...] O ser-com determina existencialmente a presença, mesmo quando o outro não é, de fato, dado ou percebido. Mesmo o estar só da presença é ser-com no mundo. Somente num ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. O estar-só é um modo deficiente de ser-com, e sua possibilidade é a prova disso. [...] A falta e “ausência” são modos de copresença, apenas possíveis porque a presença, enquanto ser-com, permite o encontro de muitos em seu mundo. Ser-com é sempre uma determinação da própria presença; ser copresente caracteriza a presença de outros na medida em que, pelo mundo da presença, libera-se a possibilidade para um ser-com. [...] Se o ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo, ele deve poder ser interpretado como fenômeno de preocupação (sorge)[3], da mesma forma que o modo de lidar da circunvisão com o manual intramundano que, previamente, concebemos como ocupação.
(HEIDEGGER, 2012, pp 175-177)

            Nesta ideia de preocupação, num sentido negativo de que o Dasein se antecipe à existência do outro, tirando-a dele, acabando, muitas vezes em assumir o seu lugar, substituindo-o em seu sofrimento e responsabilidades, esquecendo-se de si mesmo, ele assume a forma de uma impessoalidade, preocupando-se mais com o outro e com o que se pensa, esquecendo-se do verdadeiro sentido de sua própria existência, momento em que ocorre uma perda do Dasein no espaço da “opinião pública” que determina o que cada um deve fazer.
            Essa degeneração do ser-com-outros para ser-entre-outros, provoca a sua inautenticidade, o que para Heidegger se dá quando o Dasein não possui a si mesmo, quando ignora a peculiaridade de ser ele mesmo o intérprete do mundo, agindo como se fosse, apenas, mais uma entidade ou existência com as quais se depara no cotidiano da experiência.
            Heidegger não entende esta inautenticidade como defeito, mas como uma estrutura necessária à nossa existência como entidades auto interpretantes que não podem evitar interpretar a si mesmos de forma não apropriada em relação ao mundo.
            Desta forma, podemos concluir que, segundo Heidegger, o mitsein, que se expressa pela preocupação, pelo cuidado com o outro, se manifesta sob duas direções: a autêntica, onde ajudamos o outro a lidar com a sua própria liberdade e a inautêntica, quando cuidamos dele, suprimindo-lhe a oportunidade de cuidar de si mesmo.
             
3 – DASEIN COMO ANGÚSTIA E PROJETO
           
3.1 – DASEIN COMO SER DE ANGÚSTIA

Como pudemos evidenciar, sendo indispensável ao Dasein o seu ser-no-mundo, implicando ser-com-outro, onde de mostra um ser de possibilidades e caminhos para uma existência autêntica, ainda que imerso em uma existência inautêntica, em uma situação de decadência, ele precisa emergir em busca do seu verdadeiro caminho.
            É por meio da angústia (angst) que ele pode se livrar do peso imposto pela cotidianidade, já que ela revela o ser para o poder ser mais próprio, ou seja, o ser livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo.
           
Nessas condições, orientar a análise pelo fenômeno da decadência não exclui, em princípio, a possibilidade de se fazer uma experiência ontológica da presença que se abre nesse fenômeno. [...] A possibilidade de se chegar ao ser da presença, interpretando-se numa repetição e num acompanhamento o compreender dado na disposição, cresce ainda mais quanto mais originário for o fenômeno que funciona metodologicamente como disposição de abertura. De início, dizer que a angústia fornece uma condição desse tipo não passa de mera afirmação. [...] Não há dúvida de que o nexo entre angústia e medo é ainda obscuro. Mas é claro que, entre ambos, existe um parentesco fenomenal. [...] Chamamos de “fuga” de si mesmo o decair da presença no impessoal e no “mundo das ocupações’. [...] O caráter de fuga tem apenas o retirar-se, baseado no medo daquilo que desencadeia o medo, isto é, do ameaçador. [...] Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença, é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença é ser-no-mundo. Aquilo com que a angustia se angustia é o ser-no-mundo como tal. [...] Por isso, a angustia também não “vê” um “aqui” e um “ali” determinados, de onde o ameaçador se aproximasse. Que o ameaçador não se encontre em lugar nenhum, isso é o que caracteriza o referente à angústia. Ela não sabe o que é aquilo com que se angustia. [...] O angustiar-se abre, de maneira originária e direta, o mundo como mundo. [...] A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. Na angústia perde-se o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o ente intramundano em geral. Pertence, na verdade, à essência de toda disposição abrir, cada vez, todo o ser-no-mundo, segundo todos os seus momentos constitutivos (mundo, ser-em, ser-próprio). Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada uma vez que ela singulariza. Essa singularização retira a presença de sua decadência, revelando-lhe a propriedade e impropriedade como possibilidades de seu ser. (HEIDEGGER, 2012, pp. 251-257)

            Disto, podemos compreender que, segundo Heidegger, é no conceito de angústia que se encontra o traço totalizante que define a essência do “ser-ai”. É ela que oferece o solo fenomenológico-hermenêutico para a compreensão explicita da totalidade do Dasein, onde, só o homem se angustia e, ao existir, tem uma compreensão do ser. O Dasein se angustia pelo simples fato de estar no mundo e sua existência, enquanto tal, é angustiante e, paradoxalmente, o lado positivo deste fenômeno da angústia é que ele coloca a existência diante de si mesma, revelando o ser para o ser-livre, para a liberdade de escolher a si mesmo.


3.2 – DASEIN COMO SER DE PROJETO

            Sendo o Dasein um ser-em, sempre lançado no mundo, ele assume esse ser-lançado no projeto, consciente de sua situação de abandono, lançado no mundo para existir, consciente de sua liberdade e colocado diante de suas possibilidades pelo sentimento da angústia.
            É esse poder-ser, enquanto possibilidade de autenticidade que lhe permite tomar uma decisão resoluta, antecipante, autêntica e projetada para o futuro do seu plano de vida, o que lhe permite transcender diante de suas possibilidades, suas capacidades.
            Assim, concluindo o terceiro tópico deste trabalho, podemos resumir os assuntos abordados até aqui, com a seguinte reflexão:
            Diante da aceitação do fato de que somos seres finitos, contingentes, cujo projeto de vida se completa no advento da morte, e que esta, como possibilidade real se dá de forma nem sempre planejada, o homem sofre um processo de confrontação temporal frente ao mundo dado, que o angustia, onde, na maior parte de sua existência, ele procura fugir desta angústia, vivendo uma vida inautêntica, negando-se a própria finitude, embora reconhecendo de forma impessoal a de todos os outros.

4 – O DASEIN COMO UM SER PARA A MORTE

            Como o “ser-ai” é, desde sempre, projeto, possibilidade de poder ser, contingente e, portanto, também possibilidade de não ser, cuja temporalidade é revelada na mortalidade inevitável, como condição existencial impossível de evitar, haverá um momento em que cada Dasein chegará ao fim de sua jornada existencial, quer isto lhe agrade ou não.
         
Como ser-no-mundo temporal e finito, o “ser-ai” é constitutivamente (isto é, ontologicamente) ser-para-a-morte: abertura existencial para a possibilidade de não ser, ente que se compreende como tal.
                                                         (GIACÓIA JR., 2013, p 81)

             Para Heidegger, a morte não é o fim da existência, mas a sua completude, entranhada no ser do homem como estar-ai, como ser-no-mundo e como ser-de-projeto.
“Ela é a possibilidade da impossibilidade de qualquer possibilidade”.
            Ao colocar-se diante da possibilidade de lidar com a morte, o homem pode fazê-lo sob dois aspectos: o Impessoal e o Pessoal.
            No aspecto impessoal, ela torna-se um aspecto banal reduzido a rituais e cerimônias que fazem dela um fato anônimo. A morte é sempre a morte de um outro, um cadáver reduzido a uma Vorhandenheit, que nada tem a ver com ele.
            No aspecto pessoal, autêntico, ela é enfrentada sem máscaras, diante a certeza de sua soberania, colocando-se como o encontro com o nada que aparece no princípio e no fim da existência.
            Diante do ser-para-a-morte o Dasein é impulsionado a decidir-se perante as demais possibilidades que se apresentam a ele, escolhendo de forma autêntica e livre a maneira de existir, pois ao chegar à ela, toda possibilidade será definitivamente retirada, sejam elas quais quer que sejam.
            Esta capacidade que o Dasein tem de se antecipar à morte é um sinal de que ele é possuidor do seu futuro, embora isso exija que ele firme os pés no presente, para que possa projetar-se em suas potencialidades.
            Ou seja, estando ciente de sua finitude, como uma consciência intencional, de forma livre e autêntica, ele presentifica o passado e antecipa, pelo projeto o seu futuro.


5 – CONCLUSÕES

            Como esperamos haver mostrado, Martin Heidegger, como um dos principais expoentes da filosofia, em sua obra Ser e Tempo, apresentou-nos um brilhante trabalho sobre a possibilidade existencial do homem, como ser-para-a-morte, como ser que nasce condenado à morte, poder viver de forma intensa, livre, autêntica e soberana, tudo aquilo que suas capacidades lhe permitirem realizar.
            
           
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

- GIACÓIA JR., Oswaldo. Heidegger Urgente. Introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas, 2013

- HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 7.ed. Petrópolis – RJ: Vozes, 2012

- OROSCO, José Carlos. Euskadi.          São Paulo: Editora Jasa, 2013

- VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger.10.ed. – Lisboa-Portugal: Instituto Piaget 1996



[1] Heidegger, Sobre o Humanismo”, 1947, Zollikoner Seminare, pp.156 ss. Apud Giacoia Jr., Oswaldo. Heidegger Urgente. 2013, p 64.
[2] Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Trad. Maria Sá Cavalcante Schuback. 7 Ed. Petrópolis:Vozes, 2012, pp.24-26
[3] Maria de Sá Cavalcante, na sua tradução, vale-se do termo cura para expressar este conceito

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