INTRODUÇÃO
A
liberdade, enquanto ausência de
impedimentos e compreendida segundo a física galilaica, que defende a ideia de
um universo composto de corpos em movimento, e a propriedade, compreendida como uma relação que permite, como
prerrogativa exclusiva ao sujeito, dispor livremente sobre o uso ou destino de
um objeto segundo seu interesse, independentemente de sua posse, são conceitos
estabelecidos e comumente empregados pela maioria das pessoas, guiadas pelo
“senso comum”, que se apropriam deles para se situarem umas frente às outras em
uma construção social.
Thomas
Hobbes, diferentemente desse “senso comum”, considerava esses dois conceitos
válidos e aplicáveis somente à figura do soberano, liberto das obrigações de
cumprir o pacto social estabelecido entre os homens – pacto este constituído
como forma de superar os perigos de uma vida no “estado de natureza”, uma
situação de guerra permanente e de medo exacerbado.
No
texto que se segue, veremos que a partir do exame do sistema construído por
Hobbes, que fundamenta a essência do Estado moderno e do direito civil, é
possível compreender a diferença que há entre as ideias de liberdade plena e liberdade relativa e também entre as ideias de propriedade e permissão de uso.
A compreensão dessas diferenças, veremos, revelará o quão ingênua e equivocada
é a maneira como o senso comum pensa essas duas noções – liberdade e
propriedade.
O objetivo desse exame
é, como dito, trazer à tona sua concepção de liberdade e de propriedade. Nesse
propósito, e recorrendo também a outros pensadores e filósofos, de Aristóteles
a Micklethwait a fim de estabelecer entre eles um diálogo sobre pontos ora
congruentes, ora divergentes, esperamos consolidar a argumentação que defende
nossa tese central: a de que tanto as noções de liberdade quanto de
propriedade, da forma são pensadas cotidianamente, não passam de abstrações
inverídicas que tendemos a aceitar de maneira simplista, sem refletir
pormenorizadamente sobre esses temas tão vitais à nossa existência social.
A LIBERDADE
Neste capítulo
de nosso Trabalho, pretendemos mostrar que o conceito de liberdade que tomamos
por certo hoje em dia, está baseado muito mais no senso comum do que em um
sentido mais estrito, ou seja, pretendemos demonstrar que na realidade gozamos
apenas de uma liberdade parcial, relativa, característica da vida em sociedade
que se desenvolve sob a tutela da Lei e do Estado, tal qual descrita por Hobbes
quatro séculos atrás.
Segundo
Bobbio “a palavra liberdade tem uma notável conotação laudatória”, (BOBBIO,
2010, pp. 712) tendo sido utilizada para acobertar qualquer tipo de ação
política, desde a obediência ao direito natural ou positivo até a propriedade
econômica. Com maior frequência, o conceito de liberdade se refere à “liberdade
social” caracterizando situações identificáveis empiricamente e que são aceitas
por todos, independentemente dos pontos de vista normativos. Este conceito se refere às relações de
interação entre pessoas ou entre grupos de pessoas, onde um ator deixa o outro
ator livre para agir de determinada maneira.
Nesse contexto, quando
um governo, o “nosso atual Leviatã”, por exemplo, nega o passaporte a um
cidadão, impedindo-o, na prática, de viajar para o estrangeiro, limita e
restringe sua liberdade de escolha. Da mesma forma, podemos dizer que somos
“não livres” para recusar o pagamento de impostos, ou seja, todos nós gozamos
apenas de liberdades limitadas, autorizadas e fiscalizadas pelo Estado. O
próprio voto, como expressão livre e soberana do desejo individual do cidadão,
na verdade só reproduz o modelo censor do Estado, quando este determina os
candidatos que podem ser eleitos, segundo os partidos políticos, liberados por
ele para concorrer. Em outro exemplo do contingenciamento da liberdade
promovida pelo Estado, o governo pode obrigar os cidadãos a servirem as forças
armadas e, paradoxalmente, não aceitar o alistamento voluntário por parte
daqueles que desejam pertencer a seus quadros. Assim, podemos afirmar que a
liberdade de escolha individual não é condição necessária nem suficiente da
liberdade social, que se dá apenas por meio de convenção e se respalda pela
lei.
No exemplo citado por
Bobbio em sua obra, o desemprego em período de recessão econômica
caracteriza-se pela ausência da liberdade de escolha, não de liberdade social,
a não ser que a recessão tenha uma relação causal, como seria o caso de uma
determinada política governamental.
Valendo-se de um
argumento neoliberal defendido por Herbert Spencer (1820-1903), segundo o qual
o estado tem o direito de limitar a liberdade de alguém “unicamente quando for
necessário para proteger os direitos fundamentais de outro”, muitas vezes
considerados como sendo os próprios direitos naturais, o estado do bem-estar-social,
pregando a defesa da vida, extrapola este critério e o corrompe, subvertendo
sua ideia e caminhando, na prática, em sentido contrário.
No capítulo XIV do Leviatã, que trata das leis da natureza e dos contratos, Hobbes
situa o direito natural como sendo a liberdade que cada homem tem de utilizar
seu poder como bem lhe aprouver, segundo seu julgamento e razão, para preservar
sua vida. Ressalta, também, que o direito é a liberdade de agir ou omitir,
diferentemente da lei, que obriga a agir ou omitir. Segundo Hobbes, na lei da natureza, para
alcançar a paz o homem precisa renunciar aos seus direitos sobre todas as
coisas, contentando-se, apenas, com a mesma liberdade que permite aos demais.
Renunciar ao direito a algo é o mesmo que se
privar da liberdade de negar a outro homem o benefício de seu direito à mesma
coisa (...) Mas, no momento que alguém abandona ou renuncia a seu direito, fica
obrigado ou forçado a não impedir aqueles a quem o direito tenha sido cedido de
gozarem do respectivo benefício. (HOBBES, 2009, pp. 108-109).
Há bem pouco tempo, já
no início do século XX, Gandhi propôs uma forma de desobediência civil
pacífica, ancorada na renúncia ao direito natural de revidar à agressão
sofrida, ao direito natural de defender a própria vida, como forma pacífica de
apresentar ao mundo o seu protesto e o seu desejo de liberdade e independência,
manifesto nas ações de todo o povo da Índia influenciado por ele. Como seu
agressor era o povo inglês, que anunciava aos quatro ventos sua propensão à
defesa da justiça e da liberdade, inclusive lutando à época contra as forças do
eixo na Segunda Grande Guerra Mundial, a proposta acabou por mostrar-se
vitoriosa, contudo, não antes de milhares de vítimas serem massacradas pelas
forças de ocupação britânicas, que alegavam o exercício do direito de defesa, que
a coroa inglesa tinha, contra os nativos insurgentes.
Por sua vez, quase que
simultaneamente, a não reação do povo judeu na Europa, vitimado pela proposta
nazifascista, levou-o quase a seu extermínio total, o que só não ocorreu graças
à intervenção militar das forças aliadas, em cujas tropas muitos judeus se
alistaram e aos poucos que resistiram com paus e pedras, como no gueto de
Varsóvia, na Polônia.
Nesse cenário,
percebe-se, portanto, que o conceito de liberdade pautada no direito natural
está condicionado à interpretação da lei, o que reforça a posição defendida por
Hobbes, de uma liberdade negativa, aquela em que o homem pode fazer, segundo
sua vontade, tudo aquilo que não é proibido pela lei escrita.
O significado da palavra liberdade, em seu
sentido próprio, é a ausência de oposição (entendendo por oposição os
impedimentos externos ao movimento), e esse termo se aplica tanto às criaturas
racionais como às irracionais e inanimadas (...). De acordo com esse genuíno e
comum significado, um homem livre é aquele que não é impedido de fazer as
coisas de que tem vontade e que as faz graças à sua força e engenho. (Ibid.,
pp. 169-170)
Ressalte-se aqui a
afirmação de Hobbes de que os cidadãos de uma república livre como Atenas, Roma
e Luca eram tão livres quanto os súditos do Império Turco porque, fosse qual
fosse o modelo de Estado, esse Estado era livre e seus cidadãos ou súditos
tinham sua liberdade ditada pela lei escrita, que existia tanto em Roma como na
Turquia.
Os atenienses e romanos eram livres, isto é,
viviam em Estados livres... Nas torres da cidade de Luca está escrita, e
conservada até hoje, a palavra “libertas”; entretanto, não podemos daí inferir
que o cidadão de Luca tivesse maior liberdade, ou imunidade, do que o de
Constantinopla, em relação ao serviço do Estado. A liberdade é sempre a mesma,
seja o Estado monárquico, seja popular. (Ibid., p.174).
Paradoxalmente, outro
exemplo desta liberdade negativa dos homens, levada ao extremo, tal como fazia
Hobbes, pode ser melhor compreendida se a observarmos, por exemplo, através das
chamadas três Leis da Robótica, escritas em 1940 pelo físico e ficcionista
Isaac Asimov (onde a figura do robô, aqui, pode ser associada ao homem e a
figura do humano, neste caso, associada ao Estado):
1ª Lei
– Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser
humano sofra algum mal. 2ª Lei – Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam
dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito
com a primeira lei. 3ª Lei – Um robô deve proteger sua própria existência desde
que tal proteção não entre em conflito com a primeira ou segunda lei. (ASIMOV, 2014, p. 3).
Conclui-se daí, que a liberdade,
reduzida a uma simples determinação física, aplicada a qualquer corpo, como
defendia Hobbes, elimina seu valor como um princípio pelo qual os homens lutam
e morrem. Ocorre, no entanto, como o próprio Hobbes compreendia, que este
princípio (retórico, a seu ver), em verdade atinge uma conotação existencial
que não pode ser dissociado da vida humana, animal e de seu estado de natureza.
A grande questão que se coloca, então, é, na atualidade, tentar definir como e
o que vem a ser esta liberdade e em que grau podemos usufruir dela.
Em uma espécie de
síntese hegeliana, François Charles Louis Comte (1872), político e
jurisconsulto francês, já em 1834, afirmava que a liberdade é a condição
essencial do exercício de todo direito e o cumprimento de todo dever,
designando simplesmente o estado de uma pessoa que não encontra, entre seus
semelhantes, nenhum obstáculo ao seu desenvolvimento ou ao exercício inocente
de suas faculdades. Um princípio pelo qual nenhum homem pode ser possuído
legitimamente por outro, assim como o fruto de seu trabalho não pode,
igualmente, ser apropriado por outro, de maneira compulsória. Neste contexto,
ressalta que a sujeição de um homem à vontade de outro, mediante justa paga,
previamente acordada entre as partes, não fere este princípio, já que elas,
livremente, concordaram em assinar o contrato. Assim, em um estado de
liberdade, o homem que tem, por ele mesmo, o poder de senhor, livre da violência
ou da extorsão, está protegido pelas leis da sociedade. Essa era a proposta
hobbesiana para a superação do estado de natureza e do estado de guerra de
todos contra todos. Como diria Kant, ser um homem livre porque livremente
escolhe cumprir o contrato que firmou, obedecendo às leis do Estado (do
soberano) e tendo suas ações julgadas por ele, aprovadas ou condenadas, segundo
seu resultado, consideradas boas ou más, para o conjunto da sociedade. (Cf.
VAZ, 2012)
A contradição que se
observa, na simplicidade da proposta hobbesiana, é que no momento em que esta
escolha se coloca, ela se torna extensiva aos dependentes, que não firmaram,
eles mesmos, nenhum contrato para o estabelecimento de um Estado soberano que
se autorregula de modo absolutista, inclusive por determinar, através do tempo,
os mecanismos e maneiras pelas quais os súditos podem expressar seus desejos e
apresentar suas demandas, e onde o conhecimento das leis se dá de forma tácita,
não expressa, mas que se subentende – o que é, por si, uma falácia, um argumentum ad baculum (um recurso à
força), pela qual o Estado se mantém.
Para eliminar essa contradição poder-se-ia,
aproveitando as palavras de Hobbes, propor que, no momento em que os jovens se
tornassem emancipados, eles devessem realizar um juramento concordando que,
para adquirirem o direito de ingressar na sociedade, aceitavam as regras por
ela estabelecidas:
(...) desisto do direito de governar a mim
mesmo e cedo-o a este homem, ou a esta assembleia de homens, dando-lhes
autoridade para isso, com a condição de que desistas também de teu direito,
autorizando, da mesma forma, todas as suas ações. Dessa forma, a multidão assim
unida numa só pessoa passa a chamar-se Estado (em latim Civitas). Essa é a geração do grande Leviatã, ou, antes (para usar
termos mais reverentes), daquele deus mortal a quem devemos, abaixo do Deus
imortal, nossa paz e defesa. (HOBBES, 2009, p.140).
Reduziríamos, assim, o poder de um Estado
que, a cada dia se mostra mais desconectado do governante eleito, e da população,
entendida por todos os indivíduos (natos ou estrangeiros) que pertencem e estão
subordinados ao seu território, e que é constituído por uma máquina pública,
amparada por estabilidade funcional e protegida por um forte corporativismo
sindical, que se mantém, mesmo diante da
contingência do poder soberano eleito pelo povo, entendido aqui como “o
conjunto de pessoas que pertencem ao Estado pela relação de cidadania
(OSPITALITI, 1966, apud BONAVIDES,
2015, p. 81)[1].
Um Estado que se vale do poder de coação para
impor suas leis, elaboradas pelos ditos “representantes do povo”, que foram
eleitos por “cartas marcadas” e que, é amparado por um sistema judiciário,
igualmente desconectado da população (os membros do poder judiciário não são
eleitos pelo povo e sim definidos por ritos internos do próprio sistema), e
justificado pela alegação hobbesiana de que assim é necessário, graças a um
“cálculo inteligente do auto interesse acerca de tudo o que é necessário para
fazer justo um homem (...) onde o amor à liberdade, segundo Hobbes, acaba por
ser apenas uma máscara para o desejo de louvor, para a vaidade” (STRAUS, 2013,
p. 362).
Quando um homem, por contrato ou pacto, abre
mão ou renuncia a qualquer direito, é obrigado ou compelido a não impedir
aqueles a quem concedeu ou cedeu esse direito de usufruírem os benefícios desse
direito. Em outras palavras, de acordo com a próxima lei da natureza, os homens
devem cumprir seus pactos. Se este princípio não se sustenta, a própria sociedade
se dissolverá. Este princípio, fidelidade, aos contratos, de acordo com Hobbes,
é a base de toda a justiça e injustiça; pois onde não há pacto precedente,
nenhum direito foi cedido ou transferido, e todo homem tem direito a tudo.
Assim, a injustiça, ou o dano, nada mais é que o descumprimento dos pactos, o
exercício de um direito do qual a pessoa já abriu mão legalmente. (...) Todos
os deveres e obrigações para com outros derivam de pactos. (...) Não há
confiança no estado de natureza. Portanto, antes de ser correto empregar os
termos justo ou injusto, deve haver algum poder coercitivo, o soberano, que
pode obrigar, da mesma forma, todos os contratantes a cumprirem os pactos. O
soberano deve cuidar para que o terror da punição seja uma força maior do que a
atração de qualquer benefício que poderia advir de uma violação do pacto.
(Ibid, p.361)
John Locke, tomando uma
posição contrária a Hobbes, por acreditar que os homens são naturalmente bons e
que existe uma lei natural que os impede de prejudicar o outro, algo como o
nosso ethos aliado a uma razão
natural, afirmava que “o objetivo da lei não consiste em abolir ou restringir,
mas em preservar e ampliar a liberdade” (LOCKE, 2011, §57, p.45), entendendo
que uma liberdade precisa ser isenta de restrição e violência, o que não pode
acontecer se não houver leis, assumia, ao nosso ver, uma posição utópica, já
que não considerava, como Hobbes, os desejos e vontades que norteiam as ações
dos mesmos. Locke, afirmando que o homem ao nascer seria como uma “tábula
rasa”, acreditava que ele poderia ser educado para a prática do bem e da
tolerância, desconsiderando em suas propostas os interesses de dominação e de
reconhecimento e de poder que são característicos de nossa espécie.
Antônio Gramsci em seus
Cadernos do Cárcere (1975), abordou
bem este aspecto do controle hegemônico imposto pelos mais fortes aos mais
fracos, o que se mostrou na prática, uma política de Estado, imposta
primeiramente pelos detentores do capital, financiador do Estado e que
gradativamente vem sendo substituída, cedendo espaço, por uma participação
autônoma da máquina pública, pelo Leviatã moderno, que nos impõe a manutenção
do seu status quo.
Assim, encerrando este
capítulo sobre a liberdade e, resguardando as devidas proporções, vale
ressaltar que se pode perceber na atualidade um movimento pelo qual os homens, quer
pela sua complexidade, quer pela influência econômica ou militar, quer pela
amplitude dos tipos de regimes existentes nos vários Estados, pelas diferentes
línguas e costumes, quer pelos dogmas religiosos ou pela falta de um ensino
consistente de filosofia, tornaram-se reféns de um Estado asfixiante, cada vez
maior e que cada vez mais requer ser sustentado pelos impostos que há muito
superaram o “quinto” e a “derrama”, transformando a todos em servos e tornando
o conceito de liberdade e sua compreensão, refém do senso comum, em uma mera
abstração.
A PROPRIEDADE
Neste capítulo de nosso Trabalho, pretendemos
argumentar que, tal qual o conceito de liberdade, o conceito de propriedade é
tomado pela maioria das pessoas segundo o senso comum, distante do seu sentido
devidamente considerado, onde se comprova que ela somente ocorre quando é
amparada pelo poder militar capaz de assegurá-la, o que, em princípio, é
prerrogativa exclusiva do Estado, o único que pode ser proprietário de algo,
cabendo-nos apenas, como membros da sociedade, contentarmo-nos com uma
“permissão de uso” oferecida por ele.
Segundo Bobbio, o substantivo propriedade deriva do adjetivo
latino “proprius” e significa: “que é
de um indivíduo específico ou de um objeto específico (nesse caso equivale a:
típico daquele objeto, a ele pertencente) sendo apenas seu”:
Chama-se propriedade à relação que se estabelece entre o sujeito A
e o objeto X, quando A dispõe livremente de X e esta faculdade de A em relação
a X é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva, cujo limite
teórico é “sem vínculos” e onde “dispor de X” significa ter o direito de
decidir com respeito a X, quer se possua ou não um estreito sentido material.
(BOBBIO, 2010, p. 1021)
A etimologia oferece os traços de uma oposição entre um indivíduo
ou um objeto específico e o resto de um universo de indivíduos e objetos, como
categorias que se excluem reciprocamente. O conceito que daí emerge é o de
“objeto que pertence a alguém de modo exclusivo”, logo seguido da implicação
jurídica: “direito de possuir alguma coisa”, ou seja, “de dispor de alguma
coisa de modo pleno, sem limites”. Nesse ponto, registramos também a
concordância conceitual com Bobbio, manifesta por Paulo Bonavides:
Na propriedade fica a coisa substancialmente submetida à vontade
do proprietário, que sobre ela se exerce de três momentos essenciais: a) pela
exclusão dos demais ao gozo da coisa; b) pela admissão do titular a esse gozo
da coisa; c) pela segurança de que a fruição da coisa não será turbada por
terceiros. (BONAVIDES, 2015, p. 109).
Diante disso, percebe-se que a implicação jurídica (de enorme
importância sociológica) que surge daí, é a distinção entre os elementos
essenciais do conceito de propriedade, dado que todas as línguas os distinguem
e como já se fazia no direito romano; entre a “posse” (manter de fato alguma
coisa em seu poder, independentemente da legitimidade de o fazer) e a
propriedade (ter o direito de possuir alguma coisa, mesmo independentemente da
posse de fato).
Assim sendo, frente ao exposto, percebe-se que para que se possa
utilizar o termo propriedade, na precisa acepção da palavra, antes será
necessário assegurar-se de que esteja estabelecida a relação que permite ao
sujeito, de maneira livre e soberana, dispor segundo seu desejo, daquilo que
afirma ser seu, tendo ou não a sua posse. Uma casa, por exemplo, está fora
desse critério, já que, para edificá-la, vendê-la ou derrubá-la, precisa-se,
antes, da autorização do Estado. O terreno onde a casa está ou será construída,
igualmente está fora deste critério, embora se possa ter momentaneamente “o
direito assegurado” de sua posse, está condicionado ao reconhecimento deste
direito pelo Estado. Um direito à posse que não é extensivo ao subsolo, às
reservas minerais que ali possam ser encontradas, à água nascente ou que passa
por ele, etc.
Como poderia recitar um poeta qualquer: a água doce que brota da
terra foge para o mar, seu lugar de repouso final; realiza esse movimento de
maneira livre e soberana e, ainda que se tente represá-la, ela mantém sua
vontade imutável, indubitável e eterna.
Se o ar e a água não fossem de natureza fugitiva, teriam sido
apropriados. Adiantarei que isto é mais que uma hipótese, é uma realidade. Ora
se o uso da água, do ar e do fogo exclui a propriedade deve-se passar o mesmo
quanto ao uso do solo: esse encadear de consequências parece ter sido
pressentido por Charles Comte, no seu Traité de La Proprieté. A água, o ar e a
luz são coisas comuns não porque são inextinguíveis, mas porque indispensáveis...
Paralelamente a terra é uma coisa indispensável à nossa conservação, por
consequência, coisa comum, por consequência coisa não suscetível de
apropriação, mas a terra é muito menos extensa que os outros elementos,
portanto seu uso deve ser regulado não em benefício de alguns, mas no interesse
e para a segurança de todos. (PROUDHON, 1975, pp. 78-79).
Proudhon,
nesse trecho de sua obra, defendendo que a propriedade não pode existir de
fato, acaba por se valer do pensamento de São
Tomás de Aquino quando este coloca, como direito
natural, o seu “princípio de conservação do ser” (S.Th.I-II, q. 94, a. II,
resposta). Dessa forma, o
direito à propriedade acaba, no final das contas, mostrando-se uma coisa
abstrata, pois ela é e sempre será um patrimônio da cidade, arrendada por meio
de impostos àqueles que detêm sua posse.
Hobbes, de certa forma, concorda com
Proudhon, embora não seja tão radical quanto ele ao afirmar que:
Como antes de se construir a cidade todas as
coisas pertenciam a todos (...) (onde todas as coisas são em comum, nada pode
ser propriedade de um), segue-se que a propriedade tem sua origem lá onde as
cidades também têm a sua, e a propriedade de alguém nada mais é do que aquilo
que ele pode conservar graças às leis e ao poder da cidade como um todo, isto
é, daquele a quem está conferido o mando supremo sobre eles. (HOBBES, 2002, p.
111).
Já para as coisas que, apesar do Estado, são consideradas como
direitos de todos, superando o conceito de propriedade ou posse, como por
exemplo, as águas de um rio, o direito de passagem (no caso inglês), o acesso
às praias, ainda que estas sejam parte do território sob controle do Soberano,
Hobbes fala sobre justiça distributiva, um tema que seria explorado muito nos
anos que o sucederam.
A equidade, ou (como já foi dito) justiça distributiva, é gerada
pela observância da lei que determina que seja distribuído equitativamente a
cada homem o que lhe cabe, segundo a razão. [...] Dela deriva uma outra lei: que as coisas que
não podem ser divididas sejam desfrutadas por todos, na medida do possível, e,
se a quantidade da coisa o permitir, sem limites; se assim não for possível,
que a coisa seja desfrutada, proporcionalmente entre aqueles que a ela tem
direito. (Id., 2009, p. 127).
Ultimamente, a própria vegetação nativa está ganhando a proteção
do Estado e ficando, portanto, excluída do “direito assegurado” de posse.
Destacamos a expressão “direito assegurado” para evidenciar que a verdadeira
posse está diretamente relacionada à sua capacidade de defesa e manutenção,
alicerçada no uso da força dissuasiva ou coercitiva, com o emprego, quando
necessário, da violência, o que só é aceito como prerrogativa exclusiva do
Estado. “Ubi vis, Ibis ius”, (“Onde a
força, aí o direito”) (BONAVIDES, 2015, p. 96). Um
Estado que, na verdade, nasce para instituir a paz e cujo fundamento é
administrar conflitos, o que faz amparado unicamente pela força de que dispõe. “Terrae Potestas
Finitur Ubi Finitur Armorum Vis” (“O poder de terra acaba onde acaba o
poder das armas”) (Loc. cit.).
Hobbes, preferindo o excesso de autoridade ao excesso liberal,
fundamentou a desigualdade entre os homens como uma convenção entre o soberano
e seus súditos e, ao contrário de Locke, defendeu que a propriedade não era um
direito natural e que ela só nascia com o Estado. Hobbes “identificou a
necessidade de um pacto entre os homens e defendeu a substituição da igualdade
natural entre os homens por outra forma de igualdade: a igualdade civil” (BUSSINGER,
1997). Locke, por sua vez, acreditava que
o povo é sempre soberano, transferindo apenas alguns de seus direitos de
natureza em confiança ao poder legislativo, o poder supremo entre os poderes.
O que se percebe é que Hobbes em sua obra não tem uma visão
pessimista do homem, mas uma visão realista, constatando-se, quando se analisa
a sua teoria política e antropológica, um realismo no modo de compreender o ser
humano que é, por natureza, um ser de contradições e paradoxos. No pensamento
de Hobbes, tanto o homem como o legislador, ao pensar o humano, idealiza a
figura do homem ideal, que é bom, por isso torna-se necessário o Leviatã para
corrigir esta distorção.
Em seu detalhamento metodológico, sob um ponto de vista empirista
e mecanicista, Hobbes é levado a encontrar o homem como elemento formador do
Estado. Ao analisar o Estado, Hobbes faz
como um relojoeiro, ao tentar conhecer a mecânica de um relógio, decompõe o
Estado e analisa seus elementos, que são homens de paixões, e depois o
reformula. (RIBEIRO, 2014, pp. 24-35).
Concordando com ele, Bonavides coloca o Estado como o poder que
representa a energia básica que anima a existência de uma comunidade humana,
num determinado território, conservando-a unida, coesa e solidária, onde a
soberania interna significa o “imperium”
que o Estado tem sobre o território e a população. E dizer, um Estado cuja
autoridade em respeito ao território é de teor pessoal, não de “dominium” (poder sobre as coisas), mas
de “imperium” (poder sobre as
pessoas), que as obriga a fazer as coisas segundo a lei. Isto implica, por
analogia e correlação, na afirmação de que não se pode possuir de maneira
absoluta uma propriedade porque não se goza, em última instância, da liberdade
individual para possuí-la, contentando-se, cada um, com a permissão de uso que
o Soberano lhe confere, segundo sua lei.
É preciso destacar que, evidentemente, a lei,
de modo geral, não é um conselho, mas uma ordem, E também que não é uma ordem
dada por qualquer um a qualquer um, pois é dada por aquele que se dirige a
alguém já anteriormente obrigado a obedecer-lhe. (...) A lei foi criada, então,
para limitar a liberdade natural dos indivíduos, de madeira a impedi-los de
causar danos uns aos outros e levá-los, ao contrário, a se ajudar mutuamente e
se unir no combate ao inimigo comum. (HOBBES, 2009, pp. 212-215).
Como dizia nosso Rui Barbosa: “Ao
Salus Populi Suprema Lex: Dura Lex, Sed Lex, Rex Sub Lege, Sub Lege Libertas,
Omnia Sub Lege”, (À própria soberania do povo, contrapõe-se a soberania da
lei: dura lei, porém lei, o Rei está abaixo da lei, a liberdade está abaixo da
lei, tudo está abaixo da lei) (BARBOSA, 1949, p. 130).
Observando essa mesma questão sob outro
aspecto, conforme a descrição de seu “mecanismo vitimário”, René Girard (1990)
coloca que a causa principal de conflito entre pessoas se dá pelo “desejo
mimético”, onde todos desejam o que o outro deseja. A propriedade, ou melhor, a
posse dela, representa em si esse desejo e, conforme Hobbes já alertava, transforma-se
na causa principal das guerras, de onde se conclui que sua supressão; de seu
monopólio pelo Estado, como único detentor do direito de uso da força, acaba se
transformando no elemento apaziguador das contendas.
Mas a razão mais frequente por que os homens
desejam ferir-se uns aos outros vem do fato de que muitos, ao mesmo tempo, têm
um apetite pela mesma coisa; que, ao contrário, com muita frequência eles não
podem nem desfrutar em comum, nem dividir; do que se segue que o mais forte há
de tê-la, e necessariamente se decida pela espada quem é mais forte. (HOBBES,
2002, p. 30).
No Capítulo XV de seu livro Leviatã,
Hobbes, para defender o poder absoluto do Soberano, chega ao extremo ao afirmar
que, na condição de herdeiro, este deveria ser coroado, ainda que fosse culpado
de traição, quando então sua culpa seria anulada – fazendo, para isso, uma
referência a Sir Edward Coke (1552-1634), jurista elisabetano e jacobino, que
publicou em 1628 um ostensivo comentário sobre Sir Thomas Littleton (cerca de 1407-1481),
um juiz inglês que escreveu um tratado sobre mandatos, livro que pode ser
caracterizado como o primeiro livro texto sobre o direito de propriedade inglês[2].
Sem a espada, os pactos não passam de palavras sem força, que não
dão a mínima segurança a ninguém. Assim, apesar das leis naturais (que cada um
respeita quando tem vontade e quando pode fazê-lo com segurança), se não for
instituído um poder considerável para garantir sua segurança, o homem, para
proteger-se dos outros, confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua
própria força e capacidade. Roubar e espoliar uns aos outros sempre foi uma
ocupação legítima, não considerada contrária à lei natural, em locais que os
homens se agrupavam em pequenas famílias; e quanto maior era a espoliação
conseguida maior era a honra adquirida. (...) Tal como faziam os ajuntamentos
de pequenas famílias, hoje as nações e os reinados, que não passam de famílias
maiores (...) procuram legitimamente, na medida do possível, subjugar ou
enfraquecer seus vizinhos, por meio de força ostensiva ou artimanhas secretas,
por falta de qualquer outra garantia. Posteriormente, esses feitos são
lembrados com grande honra. (Id., 2009, pp. 136-137).
Hobbes escreveu isto, provavelmente influenciado pelo pensamento
isabelino, que trazia consigo a essência do comportamento Viking, instituído na
Inglaterra após sua conquista, a partir da Normandia, na França, reconhecendo
que a pirataria nunca esteve distante da formação do povo inglês. “Assim, a cidade da Lacedemônia tinha todo o
direito de decretar que os rapazes que conseguissem tirar determinados bens dos
outros sem serem apanhados em flagrante deveriam ficar impunes” (Id., 2002,
p.112).
Como jamais existiu uma “ordem mundial que
fosse verdadeiramente global, Hobbes, em sua obra o Leviatã, escrita em 1651, também foi influenciado pelo tratado da
paz vestfaliana, que pôs fim à “Guerra dos Trinta Anos”, baseado num sistema de
Estados independentes que renunciavam à interferência nos assuntos internos uns
dos outros e que limitava as respectivas ambições por meio de um equilíbrio de
forças.
A ordem mundial que conhecemos hoje foi
concebida na Europa Ocidental há quase quatro séculos numa conferência de paz
realizada na região alemã de Vestfália (...) o único princípio de ordem mundial
existente que conta com reconhecimento geral. [...] onde, para ser sustentável,
precisa ser aceito como justo, não apenas pelos líderes, mas também pelos
cidadãos. (KISSINGER, 2015, pp. 10-16).
Por tudo o que foi
exposto até aqui podemos concluir que a propriedade se dá única e
exclusivamente no âmbito do direito civil, assegurada pelo Estado, seu único e
verdadeiro possuidor, já que é ele que detém o monopólio do uso da força.
Concluímos também que, a fim de manter coesa a sociedade de homens sobre os
quais exerce a soberania e impedir que estes lutem uns contra os outros pelo
desejo de posse, o Estado, valendo-se de um artifício, concede por meio de
“permissões de uso” a posse ou o direito de lavra àqueles que estão dispostos a
reconhecerem sua soberania e que lhe pagam impostos por isso, aceitando,
inclusive, segundo suas próprias leis, ressarcir em alguns casos, mas não
todos, àquele que será prejudicado, por eventuais benefícios e melhorias que
tenha produzido, no caso da reintegração da propriedade que lhe é de direito.
CONCLUSÃO
Conforme
esperamos haver evidenciado neste Trabalho, o que deve ser entendido pelos
conceitos de liberdade e de propriedade nos dias atuais permanece, em essência,
o mesmo que foi teorizado por Hobbes em sua obra. Igualmente, esperamos haver
mostrado que a maneira como o senso comum compreende essas duas noções é,
apesar das inúmeras definições que tentam justificá-las, baseada em noções
abstratas: liberdade e propriedade nunca são, em sentido pleno, algo ao alcance
dos homens em sua vida social – contrariamente ao que costuma se acreditar.
De maneira mais formal, poderíamos reduzir a argumentação
aqui apresentada às seguintes proposições:
(1) A
parte não pode ser maior que o todo;
Portanto,
liberdade relativa é menor que a liberdade plena;
(2) Na
sociedade, o homem é obrigado a seguir leis;
(3) Como é obrigado a seguir leis, o homem não
é totalmente livre para não segui-las, ao menos por sofrer repressão se o
fizer;
(4) Somente aquele que é absolutamente livre,
que é verdadeiramente senhor de si, pode almejar propriedade;
Portanto,
o homem, por não ser totalmente livre, não pode almejar a propriedade.
(5) O
gozo da permissão de uso ou da posse não é propriedade.
(6)
Somente o Estado exerce o poder livre e soberano.
Portanto,
somente o Estado é detentor da propriedade.
E,
nesse percurso, também colocamos em destaque que Hobbes não foi o idealizador
da maioria dos feitos e pensamentos que lhe foram atribuídos ao longo da
história, mas que, influenciado por outros grandes pensadores que o
antecederam, teve a originalidade de propor um sistema, um contrato social para
uma vida em sociedade, cujas bases resistem até nossos dias.
Hobbes
não foi o primeiro a basear sua teoria política em uma visão obstinada e
empírica da natureza humana: essa honra pertence a Nicolau Maquiavel. Tampouco
foi o primeiro a aplicar o raciocínio dedutivo: seu precursor foi Thomas de
Aquino. Ele sequer foi o primeiro a tocar o conceito de Estado Nacional em vez
de Cidade Estado ou Cristandade; isso remonta a Jean Bodin. Hobbes, porém, foi
o primeiro a reunir esses três conceitos em um único volume e acrescentar a
ideia explosiva de um contrato social entre governantes e governados.
(MICKLETHWAIT, 2015, p. 35).
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