segunda-feira, 9 de março de 2020

UM SINGELO ÚLTIMO DESEJO:


Revendo alguns de meus trabalhos sobre Heidegger e seu Dasein, o ser lançado ao mundo, existente, Ser - aí ou Ser – aí - no mundo, reconhecidamente um Ser angustiado, cuja autenticidade da vida o obriga a reconhecer-se como um Ser para a morte, certo de sua finitude em momento incerto; um Ser morrente que precisa viver e experimentar a vida a todo momento, extraindo dela tudo o que puder gozar, detive-me a pensar sobre o que desejaria, como um singelo e último desejo, ocorresse no momento de minha partida:
Quando chegar a minha hora, se o clima for apropriado aos vivos e o tempo permitir, gostaria de ser velado quase nu, vestido apenas por uma modesta gravata.
Seria, para mim, o sinal de que, neste derradeiro momento, finalmente estaria livre de convenções, contratos sociais, regulamentos e leis, às quais fui submetido contra a minha vontade, desde que aqui cheguei, nu e assustado.
Quiçá, não por mim, mas por conta do rubor ou curiosidade que possa provocar aos que porventura venham se despedir, toleraria um pequeno lençol, cobrindo junto com as flores, o motivo de sua vergonha.
Gostaria, também, que meus despojos pudessem, depois de retiradas as partes úteis, e se a ordem assim o permitir, servissem de alimento aos animais vertebrados, numa última tentativa de amenizar minha dívida para com aqueles que também me serviram de alimento, inclusive afetivo.
Não os vermes que já me acompanharam por muito tempo, mas os vertebrados como aves, porcos ou peixes, até mesmo cães ou gatos, para os quais minha carne, despojada da alma, teria alguma serventia, acreditando que para bovinos e caprinos ela não seria apropriada, salvo julgamento posterior que também pudesse contemplá-los, sem nenhuma restrição de minha parte.
Na impossibilidade, que meu corpo cremado, voltando à condição de carbono e cálcio, fosse depositado como adubo de uma planta qualquer, preferencialmente uma que possa produzir frutos para o deleite de pequenos pássaros, ou flores que acolham abelhas e borboletas.
Que mais poderia desejar?
Cheguei aqui nu e em plenas condições de me fazer totalidade e, partindo com apenas uma gravata, já sairia desta vida com um bom lucro, além de evitar carregar um peso extra na minha jornada, frente a um futuro que me é desconhecido; abandonando, assim, tudo aquilo que, acredito eu, não me fará falta; crente de que o Criador, como aqui já fez, me proverá das condições para alcançar tudo aquilo que porventura, ele venha a planejar para mim ou que eu venha precisar.
Levando apenas uma gravata, carregarei comigo um símbolo de ostentação e lembrança do meu cativeiro, da masmorra social que cerceou, em vida, a minha liberdade e não me permitiu ser o que poderia ter sido enquanto homem; esperançoso de que tal recordação possa me auxiliar, como uma espécie de memória genética transcendente, nas novas escolhas que precisarei fazer ou dos novos caminhos que deverei trilhar.
Quanto ao resto, minhas parcas posses, deixá-las àqueles que carregarão consigo a minha semente, esperando que o maior valor que possam levar seja o meu carinho, amor e gratidão eterna.
Aos amigos, a lembrança de bons momentos compartilhados e dos bons embates travados.
Aos demais, a tentativa de explicitar um modesto exemplo de vida, combativa, frugal e dedicada à tarefa de aprender e ensinar.


Professor Orosco.

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