segunda-feira, 28 de outubro de 2013

DO GATO AO TAMBORIM


            Neste último domingo, após deleitar-me saboreando uma bela pizza de atum, despreocupadamente fui dormir sem dar o devido tempo ao meu corpo para que este realizasse corretamente a sua digestão, o que, previsivelmente, tornou-se um irritante problema gástrico à noite.
            Durante o sono atribulado, acho que, em consequência do atum, não deu outra, sonhei com gatos.
            Em sonho, rememorei uma descrição que ouvi do Dr. Alex Villas Boas, renomado teólogo, sobre a lenda dos gatos, que era mais ou menos assim:

  Durante a realização de uma oração, o mestre dos monges, numa aldeia do Tibete, foi interrompido pelo irritante miado de um gatinho que adentrou o templo.
  Como não poderia deixar de ser, o velho monge, interrompendo sua oração, levantou-se e deu leite ao gato, de tal sorte que, enquanto este bebia, pode voltar e completar sua meditação.
  No dia seguinte, reunidos todos novamente, mestre e discípulos, antes mesmo do início da oração, lá estava o gato.
  Como no dia anterior, desta feita antes de ser interrompido, o mestre antecipou-se e deu leite ao gato.
  Este procedimento tornou-se um hábito, pois regularmente, à hora da oração, o gato comparecia tão pontualmente quanto os discípulos e bebia o seu leite.
  A notícia correu, e passado algum tempo, já eram muitos os gatos presentes e já havia, entre os monges, inclusive uma escala para servir o leite, que já não era oferecido em um pires, mas por um balde inteiro.
  Passaram-se os anos, o mestre morreu, assim como os gatos primeiros, mas o processo continuou, sendo incorporado ao ritual da oração, praticado com toda a devoção pelos novos monges.
  Séculos depois, com a invasão chinesa, vieram os cães (os chineses já haviam comido seus gatos e agora se alimentavam de cães também) que, pela lei da natureza, deram fim aos gatos.
  Os monges remanescentes viram-se, portanto, diante de um dilema.
  O ritual da oração não podia mais contar com os gatos e para muitos, ele ficava incompleto.
  Criou-se, então, uma corrente para alterar o ritual, suprimindo-se os gatos e, como não poderia deixar de ser, os mais conservadores, alegando que isto macularia a imagem do mestre inicial, mostraram-se contra a “inovação”.
  O impasse foi crescendo, as posições se polarizaram e a solução não podia ser outra, senão a cisão.
  Criaram-se, assim, duas novas seitas: “A dos adoradores de gatos” e “a dos não adoradores de gatos”.

            Esta alegoria, transportada para a nossa cultura, poderia ser representada por um número sem fim de passagens, onde, ao longo do tempo fomos incluindo gatos nos nossos rituais, acabando por ficar presos a eles, tanto quanto aqueles que, no Tibete, eram incumbidos de servir o leite.
            Examinemos, por exemplo, a Bíblia Sagrada, no Novo Testamento.
            Todos os evangelhos são ditos “segundo” o apóstolo que transmitiu a mensagem.
            Isto significa primeiramente que, à exemplo do que era costume à época, todos os ensinamentos eram transmitidos por via oral e, assim sendo, não foram eles que redigiram os textos, mas sim, seus discípulos e os discípulos de seus discípulos que, por mais fieis que fossem à mensagem, “ouviram dizer”, não conheceram o Cristo, caso contrário, seriam eles também considerados apóstolos.
            Boa parte destes evangelhos escritos originalmente, não em aramaico ou latim, mas em grego, chegaram ou foram complementados pelos padres, os primeiros líderes religiosos após o final do século primeiro, que tinham a preocupação de manter, da forma mais fiel possível, os ensinamentos que receberam dos apóstolos.
            Entre os padres apostólicos, registram-se os escritos de Clemente de Roma, (sucessor de Anacleto e terceiro sucessor de Pedro na Sé Romana); Inácio de Antióquia, Policarpo de Esmirna e Pápias de Hierápolis (discípulos de João Evangelista),além de outros, anônimos, autores da Didaké (elementos da catequese) e da Epístola de Barnabé.
            É importante, neste ponto do artigo, fazer menção ao trabalho de Clemente de Alexandria (150/215), pioneiro da ciência eclesiástica e professor de Orígenes, que encontrou um método natural de harmonizar a religião e a filosofia, aplicando-o ao Antigo Testamento, em substituição à sua interpretação liberal, isto é, reconhecendo sua estrutura metafórica.
 
“Eu não chamaria esta lei de Antigo Testamento se eu a compreendesse em espírito. A lei só se torna Antigo Testamento para aqueles que a compreendem de forma carnal.”
                          Homílias sobre Números

            Foram tantos os escritos que, o Imperador Constantino, percebendo na doutrina cristã, uma poderosa ferramenta para manter unido o império, tornou oficial esta religião e ordenou a confecção de uma síntese dos inúmeros escritos compilados, que pudesse contemplar, ao menos na essência, todas as correntes teológicas existentes, o que foi cumprido à risca, realizando-se o "I Concílio de Niceia" , no ano de 325.
            Inúmeras foram as contendas para esta síntese, entre as quais destacamos a de Atanásio de Alexandria contra o Arianismo, defendendo os cânones do Novo Testamento, incluindo todos os livros aceitos.
            Ário (256/336) negava a consubstancialidade entre Jesus e Deus; que os igualasse, fazendo do Cristo pré-existente uma criatura criada, embora em primeira mão e excelsa entre todas, o que o colocaria subordinado a Deus e não como o próprio Deus.
            Para o arianismo, só existe um Deus e Jesus é seu filho, e não o próprio Deus, que seria, assim, um eterno mistério, oculto em si mesmo.
            Em outro exemplo, os textos filosóficos que nos chegam, servindo de base para muitas de nossas leis e sistemas políticos; de base para muitas de nossas ciências; quase todos extraídos a partir de fragmentos, em verdade, trazem consigo um número inimaginável de gatos, que poucos conseguem perceber.
            Como praticamente todo o conhecimento do período inicial da filosofia era transmitido de forma oral, chegando o próprio Platão a manifestar-se contra a palavra escrita, que ele entendia ser incapaz de defender-se, dada a sua imutabilidade, uma vez proferida, tudo o que temos são opiniões (doxas) dos primeiros sábios.
            Acredita-se ter sido Filolau, discípulo de Pitágoras, o primeiro a publicar alguma obra, isto já à época de Socrates.
            Entre os primeiros doxografos, encontramos a figura de Aristóteles que, já em seu livro Metafísica Alfa faz menção aos pré-socráticos, constituindo-se assim, esta obra, em uma das fontes mais confiáveis sobre o pensamento de seus antecessores.
            Segundo ele, Tales, de Mileto, marco inicial da filosofia ocidental, fundador da escola jônica, considerava a água como sendo a origem de todas as coisas, sobre a qual a terra flutuava.
            Para Tales, a água apresentava-se sob as mais variadas formas e estados, passando de um ao outro, mas mantendo, contudo, sua identidade.
            Anaxímenes e Diógenes, mais do que a água, consideravam o ar como o princípio por excelência.
            Para eles, a água precisava de um suporte ou continente para sustentar-se, enquanto o ar sustentava a si mesmo, possuindo a autossuficiência de um princípio.
 
“Respirar é o primeiro ato de um ser vivo, e também o último, antes de morrer, por isso o ar é o princípio vital.”

            Hipaso, de Metaponto, e Heráclito, de Éfeso, consideravam, por sua vez, o fogo como princípio, o elemento de luz, o termo que dá origem às coisas, retirando-as do indeterminado (trevas) e determinando-as.
            Empédocles, de Agriento, que aos três princípios anteriores, a água, o ar e o fogo, somou a terra, fixou estes quatro elementos como princípios materiais, aos quais chamou raízes, afirmando que, ao se transformarem, os seres se movimentam, fruto da alteração na forma de composição das coisas, e o fazem segundo as quantidades de raízes que formam o seu ser.
            Anaxágoras, de Clazômenas, afirmava que os princípios são infinitos e que as homeomerias (elementos) se geram e se corrompem somente na medida em que se misturam.
            Para ele, o universo se constituiu a partir de uma primeira mistura, pela ação do Nous, uma inteligência ordenadora, a única realidade que não podia ser composta.
            Percebendo a fraqueza dos argumentos de seus antecessores, que afirmavam ser a causa material, o princípio das coisas, Aristóteles, já à sua época questionou que, mesmo admitindo-se o processo de geração e de corrupção de um único elemento, seria necessária a ação daquilo que provocou este movimento, ou seja, seria necessário buscar outro princípio, o do movimento, pelo que a causa material não poderia ser a única.
            Ele estava, com isto, simplesmente, retirando alguns gatos do contexto.
            Gatos, abundantes no antigo Egito, quase extintos no Tibete, com número inversamente proporcional ao número de humanos pobres, em quase em todas as regiões do planeta; substituídos pelos Yorkshire para resolver os problemas de ratos nas minas inglesas, o que não pôde ser feito na China, frente aos apetitosos dotes destes canídeos; que contribuíram, outrora, para o esplendor do nosso Carnaval; que continuam, até hoje, preenchendo lacunas e ocupando espaços vazios de nossa mente.
            Gatos que, transformam-se, cada vez mais, no objetivo maior de todos aqueles, filósofos ou antropólogos, além de outros, que buscam conhecer as verdades primeiras, ou que sonham reproduzir o belo som do tamborim.
           
Professor Orosco
            

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