Na continuidade de nossa apresentação, reeditando um texto que publicamos no dia 11 de Março deste mesmo ano, reforçamos a necessidade de que, para que se possa realmente tentar compreender o espírito da filosofia medieval e sua defesa teocêntrica, aquela que coloca Deus como centro de todas as coisas, é preciso, antes, ter em mente, ou fazer uma breve recordação, dos enunciados propostos pela filosofia grega.
Começando por Parmênides, que elaborou o princípio da identidade, o que é, é, e não pode deixar de ser.
Que elaborou, também, o princípio da não contradição, se o que é, é, o seu contrário, o não ser, não é, e, portanto, não pode ser.
Conhecimento que se mostrou necessário para a compreensão da lógica, que tem tudo a ver com a validade, de Aristoteles, o qual se interessava pelas proposições categóricas (quantificadas).
Para ele, uma proposição, um enunciado, precisava ter sentido e apresentar um valor de verdade, verdadeiro ou falso, ou seja, precisava afirmar ou negar alguma coisa.
Assim, de posse deste conceito, quando analisamos todas as premissas de um argumento e as confrontamos com a conclusão, podemos inferir a validade da argumentação.
Se todos os valores de verdade forem verdadeiros, a tautologia se faz presente; se todos forem falsos, a contradição se mostra evidente e, quando parte do argumento se mostra possivelmente verdadeiro e parte possivelmente falso, a contingência se manifesta, despertando a dúvida, a possibilidade de ser e de não ser.
Desta forma, quando subimos pelos galhos da "Árvore de Porfirio", compreendemos a contingência dos seres e, a partir desta compreensão, intuímos a "existência" de um Ser, maior que tudo que pode ser pensado e dito, segundo Santo Anselmo, ou causa primeira, a causa não causada, segundo Santo Tomas de Aquino.
Existência, Ex (fora) + Sistere (residir).
Um Ser que, para comprovar sua ação causal, doa algo de si ao sujeito causado, algo como aquilo que a genética já comprovou quando analisa a descendência dos seres, por exemplo.
Neste caso, sua substância.
Em outras palavras, para que uma causa se mostre evidente, precisa ceder algo que tem, tornando-se a raiz da sua própria causalidade.
A ciência, que tem seu ponto de partida baseado em axiomas, raramente, ou quase nunca, se interessa pela justificação do ser e do movimento, assim como da causalidade, o que não é o caso da filosofia, que busca alcançar o conhecimento da causa primeira e princípio de todas as coisas.
Não é o caso da Religião, particularmente do pensamento teocêntrico cristão da Idade Média, para quem o Ser é Deus, a causa primeira, criadora de todas as coisas e de si mesma.
Uma religião que, em seu antropomorfismo, ao defender a capacidade de intuir este ato criador dentre todas as coisas que percebemos na natureza, admite ser esta a qualidade que nos foi doada no ato da criação.
E, ao fazê-lo, levar-nos a compreender que a causalidade se manifesta por uma ideia pré-concebida do ato que se consuma, no espírito de quem age ou faz, assim como reconhecer a nossa incapacidade para criar, limitada a poder, apenas, a combinar ou transformar simplesmente, aquilo que já existe e foi criado.
Uma religião que reconhece que o homem, assim criado, só causa na medida em que ele é, e, como nada é anterior ao Ser, não poderá tentar ir além dele.
Uma religião que afirma que, como Ser que criou tudo, que criou a si mesmo, Deus, de forma soberana e livre, como perfeição, só quer a si, só necessita de si, e, é em relação a si que quer todo o resto, permitindo por analogia e por sua infinita bondade, ao homem, experimentar o seu Bem.
Admitindo que é pela bondade que Deus permite aos seres serem, que permite que sejam causas de outras causas.
Que é por sua bondade que participamos de sua potência e vontade, desfrutando de sua glória.
E que somente por analogia que nos assemelhamos a ele, que proporcionalmente podemos ser causa de outras causas, compreendendo que a finalidade disto está no âmago do próprio ser, na sua perfeição.
Extraído da Obra O Espírito da Filosofia Medieval, de Étienne Gilson, Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martina Fontes, 2006.
Professor Orosco.
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