sexta-feira, 11 de novembro de 2016

GASTON BACHELAR E A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO


Resumo: O presente trabalho destina-se a apresentar, baseado em um método de abordagem qualitativa, fundamentado no estudo de caráter hermenêutico, que se pode depreender particularmente, a partir da leitura do livro A Formação do Espírito Científico, uma síntese do pensamento de Gaston Bachelard, um filósofo e poeta francês, focado principalmente nas questões referentes à filosofia da ciência. Mostrar, a partir da análise do conjunto de sua obra, do potencial metodológico implícito na sua epistemologia e filosofia das ciências, a noção da “construção do objeto científico”, a noção da “construção da alma ou do espírito científico”.

Palavras Chave: Fenômenos, Ciência da Realidade, Pensamento Abstrato, Espírito Científico



Abstract: The present work aims to present, based on a method of qualitative approach, based on the study of hermeneutical character, which can be inferred particularly, from the reading of the book The Formation of the Scientific Spirit, a synthesis of the thought of Gaston Bachelard, a French philosopher and poet, focused mainly on questions concerning the philosophy of science. To show, from the analysis of the whole of his work, the implicit methodological potential in his epistemology and philosophy of sciences, the notion of "construction of the scientific object", the notion of "construction of the soul or the scientific spirit."

Keywords: Phenomena, Reality Science, Abstract Thinking, Scientific Spirit



1 – INTRODUÇÃO

            O presente trabalho destina-se a apresentar, baseado em um método de abordagem qualitativa, fundamentado no estudo de caráter hermenêutico, que se pode depreender particularmente, a partir da leitura do livro “A Formação do Espírito Científico”, obra publicada no ano de 1938, uma síntese do pensamento de Gaston Bachelard, um filósofo e poeta francês (1884/1962) focado principalmente nas questões referentes à filosofia da ciência.
Mostrar, a partir da análise do conjunto de sua obra, do potencial metodológico implícito na sua epistemologia e filosofia das ciências, a noção da “construção do objeto científico”, a noção da “construção da alma ou do espírito científico”, entendidas como uma crítica a algumas perspectivas epistemológicas adotadas até então.
Mostrar que com os principais conceitos desenvolvidos por ele na sua epistemologia – ruptura, vigilância, obstáculo, problemática e recorrência epistemológica -, ele procurou dar a esta ciência nascente, uma filosofia compatível com a revolução científica promovida no início do século XX, particularmente a partir da Teoria da Relatividade, formulada por Albert Einstein.  
E dizer, mostrar que, partindo deste objetivo, Bachelard formula suas principais proposições para a filosofia das ciências, a partir da historicidade da epistemologia e da relatividade do objeto, rompendo com as ciências anteriores em termos epistemológicos e tecendo críticas à postura empirista que adotavam, uma vez que, para ele, o seu objeto encontra-se em relação e não pode mais ser considerado absoluto, afirmando que o novo espírito científico encontra-se em descontinuidade, em ruptura com o senso comum, tido por ele como repleto de preconceitos, baseados em boa medida nos limites do empirismo.

2 – SOBRE A OBRA DE GASTON BACHELARD
           
            Historicamente, vê-se que Bachelard viveu numa época de amadurecimento da ciência, que podemos inferir por Revolução Científica do Século XX, onde pode presenciar a discussão sobre o surgimento e as implicações da física relativista, com a consequente quebra do empirismo, uma vez que o objeto de estudo dependia agora do referencial e, assim, não podia mais ser considerado absoluto, como ele mesmo descreve ao “rotular de modo grosseiro as diferentes etapas históricas do pensamento científico”:

O primeiro período, que representa o estado pré-científico, compreenderia tanto a Antiguidade clássica quanto os séculos de renascimento e de novas buscas, como os séculos XVI, XVII e até XVIII. O segundo período, que representa o estado científico, em preparação no fim do século XVIII, se estenderia por todo o século XIX e início do século XX. Em terceiro lugar, consideraríamos o ano de 1905 como o início da era do novo espírito científico, momento em que a Relatividade de Einstein deforma conceitos primordiais que eram tidos como fixados para sempre.
                                                          (BACHELARD, 1996, p 9)
           
            Sua obra pode ser dividida, ainda que de forma didática, em duas fases: a obra diurna (epistemologia e história das ciências) e a obra noturna, que remete ao estudo no âmbito da imaginação poética, dos devaneios e dos sonhos.
            Dentre as obras diurnas se destacam:  “O novo espírito científico”, de 1934; “A formação do espírito científico”, de 1938 (objeto central de nosso estudo); “A filosofia do não”, de 1940; “O racionalismo aplicado”, de 1949 e “O Materialismo racional”, de 1952. Dentre as obras noturnas destacam-se “A psicanálise do fogo”, de 1938; “A água dos sonhos”, de 1942; “O ar e os sonhos”, de 1943; “A terra e os devaneios da vontade”, de 1948; “A poética do espaço”, de 1957.
Bachelard expôs um racionalismo dialético, um diálogo entre a razão e a experiência, partindo do ponto de vista de que a descoberta racional é um processo pelo qual o conhecimento novo é assimilado a um sistema que muda apenas na medida em que cresce, rejeitando o conceito cartesiano de que as verdades científicas são partes imutáveis que se somam para alcançar uma “verdade total”, da mesma forma que refutava o empirismo de Bacon, pautado em seus ídolos.[1]

3 – CRÍTICAS ÀS FILOSOFIAS VIGENTES E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO

            No embate que Bachelard travou contra as filosofias do imobilismo, que defendiam, entre outras coisas, que existe uma continuidade entre senso comum e ciência, ele apontava para a descontinuidade entre o conhecimento científico e o conhecimento comum, onde o primeiro se constrói através da negação da experiência primeira, entendida como a primeira observação, a experiência colocada antes e acima da crítica.
            Para ele, a superação do empirismo se dá através do racionalismo, onde a postura epistemológica do novo cientista proclama-se no primado da realização sobre a realidade, ou seja, o cientista aproxima-se do objeto não mais por métodos baseados nos sentidos, na experiência comum, mas pela teoria, mediada pela razão.

A ciência da realidade já não se contenta com o como fenomenológico; ela procura o porquê matemático. (Ibidem, p 8)
           
            Para Bachelard, no pensamento pré-científico, não se procura a variação, mas a variedade, o que leva o espírito de um objeto para o outro, sem método, onde o espírito procura apenas ampliar conceitos e a variação liga-se a um fenômeno particular. Por sua vez, no estado científico do pensamento, a ciência, como um todo, interessa a todos os homens cultos e a ideia dominante é a de que um gabinete de história ou um laboratório, montados como se fossem uma biblioteca, aos poucos, estabeleçam, quase que automaticamente, as ligações entre os achados individuais.
            Finalmente, na terceira etapa histórica do pensamento científico, o espírito científico passaria necessariamente pelos estados concreto, em que o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno e se apoia numa literatura filosófica que exalta a natureza; pelo estado concreto-abstrato, em que o espírito acrescenta à experiência física esquemas geométricos e se apoia numa filosofia da simplicidade e no estado abstrato, em que o espírito adota informações voluntariamente subtraídas à intuição no espaço real, desligadas da experiência imediata.
            Bachelard coloca ainda que, o espírito científico proíbe que se forme opiniões sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza, evidenciando a necessidade de que é preciso saber formular com clareza os problemas.

Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. (Ibidem, p 18)

            Neste momento, a noção de obstáculo epistemológico ganha, para Bachelard, fundamental importância para o desenvolvimento de conhecimento no âmbito das pesquisas onde, o pesquisador, ao olhar seu objeto de estudo, pode incorrer no perigo de se deixar levar pelo que lhe é visível, dando-lhe um status de verdade, que ele pode não ter. Para ele é na superação destes obstáculos que reside o sucesso de uma pesquisa científica e a primeira advertência que faz é a necessidade de que os cientistas tenham consciência de que se eles não forem neutralizados, todo o processo de pesquisa ficará comprometido. Dos fundamentos ao resultado.
            Este primeiro obstáculo, que ele define por realidade, está intimamente ligado às críticas que ele faz ao empirismo. Bachelard dá especial importância a este obstáculo porque, para ele, diante do real, é praticamente impossível anular, de uma só vez, todos os conhecimentos habituais. Diante do real, aquilo que acreditamos saber ofusca aquilo que deveríamos saber. Ao designar objetos segundo sua utilidade, deixamos de conhecê-los; temos somente uma opinião sobre eles e o espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, uma constatação à qual o próprio Sócrates já havia chegado.
           
O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é “o que se poderia achar ”, mas sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. [...] No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização. (Ibidem, p 17)
            O segundo obstáculo epistemológico, o senso comum, semelhante ao primeiro, relaciona-se especificamente coma dificuldade com a qual se depara o cientista que precisa separar o seu conhecimento comum, suas opiniões, seus preconceitos, as avaliações relacionadas à sua posição social ou econômica, do conhecimento teórico, científico, que deve estar comprometido com a busca da verdade, baseada em leis gerais, em conceitos e não em preconceitos.
            Neste contexto, poderíamos associar o trabalho de Thomas Kuhn (1922/1996), um físico e filósofo da ciência, que abordou a questão dos paradigmas, como modelos de práxis efetiva, reconhecidos como válidos e que dão origem a tradições de pesquisa científica, como um dos obstáculos descritos por Bachelard, formadores de preconceitos nos quais o cientista fica preso até que uma ruptura deste paradigma (revolução científica) o liberte.

Hábitos intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa. (Ibidem, p 19)

            Bachelard fala também sobre o obstáculo do conhecimento geral ao conhecimento científico, uma vez que ele suspende a experiência e suprime a abstração científica verdadeiramente sadia. Neste ponto, ele realiza uma forte crítica ao sistema educacional que informa aos estudantes, de forma quase dogmática, conceitos aos quais eles deveriam chegar de forma crítica.
            Fala também do obstáculo verbal, quando o uso inadequado de um termo qualquer, um substantivo que pode ser adjetivado, é utilizado sem o devido cuidado de ser corretamente contextualizado, provocando uma distorção da imagem real do objeto estudado.

Uma ciência que aceita as imagens é, mais que qualquer outra, vítima das metáforas. Por isso, o espírito científico deve lutar sempre contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas. (Ibidem, p.48)

            Bachelard alerta ainda para o fato de que, normalmente, os homens tendem a ceder àquilo que ele chamou de instinto conservativo, em detrimento do instinto formativo e que mesmo o cientista mais dedicado, com o tempo acaba fatalmente cedendo a conceitos anteriormente aceitos, quando então o instinto conservativo faz cessar o seu crescimento espiritual.
            Aqui, neste ponto, Bachelard detalha a diferença conceitual sobre o espistemólogo e o historiador da ciência.  Para ele, o historiador da ciência deve tomar as ideias como se fossem fatos e o espistemólogo deve tomar os fatos como se fossem ideias, inserindo-as num sistema de pensamento. Em suas palavras

Um fato mal interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o espistemólogo, é um obstáculo, um contra pensamento. É sobretudo ao aprofundar a noção de obstáculo epistemológico que se confere pleno valor espiritual à história do pensamento científico. (Ibidem, p 22)
           
           
4 - CONCLUSÃO

            Diante do que foi exposto, concluímos que a epistemologia bachelardiana ainda está presente e atuante no meio científico, onde apresenta contribuições significativas, rompendo com o imobilismo metodológico vigente antes dele, ao inaugurar a filosofia do inexato, onde o conhecimento constitui-se por meio de aproximações contínuas, viabilizadas pelo conhecimento teórico e pela aplicação técnica.
            Neste contexto, o objeto não é mais dado, mas construído denotando uma supremacia do conhecimento abstrato e científico sobre aquilo que ele chamou de conhecimento primeiro e intuitivo, aquele que é imediato, não discursivo.
            Ou seja, Bachelard apresenta seu espectro epistemológico, afirmando que a ciência oscila dentro de um espectro pré-definido; destacando o pluralismo das ciências; apontando que a filosofia da ciência é, por natureza, aberta; apontando para a existência de obstáculos epistemológicos, onde o primeiro a ser superado é a experiência primeira, a destruição das opiniões; afirmando que o espírito científico deve formar-se reformando-se e não aceitando nada como definitivo e que tudo aquilo que sabemos, nosso conhecimento científico, é sempre fruto de uma desilusão com aquilo que julgávamos saber frente aquilo que deveríamos saber.
                       

5 – REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


- BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996

- BACON, Francis. Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1988 – Coleção os Pensadores

- CAVAILLÈS, Jean. Obras Completas de Filosofia das Ciências. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2012

- GREGO, John. SOSA, Ernest. Compêndio de Epistemologia. Trad. Alessandra Siedschlag Fernandes. São Paulo: Edições Loyola, 2012



[1] A principal diferença entre Bacon e Descartes está na posição que eles assumem em relação aos sentidos e ao intelecto na aquisição de conhecimento. Enquanto que, para Descartes, os sentidos possuem uma natureza enganadora e o intelecto é limitado, para Bacon o problema não está na natureza dos sentidos nem na limitação do intelecto, mas em seus usos indevidos. O método proposto por Bacon consiste basicamente na indução verdadeira e na demonstração experimental, entendendo-se por indução verdadeira um tipo de raciocínio composto por premissas cuja fonte de observação é empírica, regular e sistemática, das quais se realiza um salto inferencial para se alcançar uma proposição geral. Uma vez extraída uma conclusão de cunho generalizante, que deve ser demonstrada experimentalmente, obtém-se o que Bacon denominou de axioma científico. Para Bacon, os sentidos e o intelecto não podem agir sem auxilio metodológico, e isso se deve à presença na mente humana de ídolos, noções falsas que habitam a mente humana e obstruem o acesso à verdade. Para ele, existem quatro tipos de ídolos: 1) os Ídolos da Tribo, que dizem respeito à natureza humana, cuja ordem é inferior à ordem da natureza e, por isso, todas as percepções dos sentidos e da mente ao fazerem analogia com a própria natureza humana e não com a ordem natural criam distorções entre o que é percebido e o que é da ordem da natureza. 2) Ídolos da Caverna, que versam sobre o homem enquanto indivíduo. Dado que o homem é singular e possui, em virtude de sua formação, diferentes impressões sobre os fatos, o homem inclina-se a buscar o conhecimento em seus próprios mundos e não no universal. 3) Ídolos do Foro, que dizem respeito à associação recíproca entre os homens através do discurso, onde as palavras comportam uma multiplicidade de sentidos. 4) Ídolos do Teatro, que se encontram associados às antigas doutrinas filosóficas que, por não utilizarem os auxílios metodológicos, figuram mundos fictícios.

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