Resumo: O presente trabalho destina-se a apresentar,
baseado em um método de abordagem qualitativa, fundamentado no estudo de
caráter hermenêutico, que se pode depreender particularmente, a partir da
leitura do livro A Formação do Espírito
Científico, uma síntese do pensamento de Gaston Bachelard, um filósofo e
poeta francês, focado principalmente nas questões referentes à filosofia da
ciência. Mostrar, a partir da análise do conjunto de sua obra, do potencial
metodológico implícito na sua epistemologia e filosofia das ciências, a noção
da “construção do objeto científico”, a noção da “construção da alma ou do
espírito científico”.
Palavras Chave: Fenômenos, Ciência da Realidade, Pensamento
Abstrato, Espírito Científico
Abstract: The present work aims to present, based on a
method of qualitative approach, based on the study of hermeneutical character,
which can be inferred particularly, from the reading of the book The Formation
of the Scientific Spirit, a synthesis of the thought of Gaston Bachelard, a
French philosopher and poet, focused mainly on questions concerning the
philosophy of science. To show, from the analysis of the whole of his work, the
implicit methodological potential in his epistemology and philosophy of
sciences, the notion of "construction of the scientific object", the
notion of "construction of the soul or the scientific spirit."
Keywords: Phenomena, Reality Science, Abstract
Thinking, Scientific Spirit
1
– INTRODUÇÃO
O presente trabalho
destina-se a apresentar, baseado em um método de abordagem qualitativa,
fundamentado no estudo de caráter hermenêutico, que se pode depreender
particularmente, a partir da leitura do livro “A Formação do Espírito Científico”, obra publicada no ano de 1938,
uma síntese do pensamento de Gaston Bachelard, um filósofo e poeta francês
(1884/1962) focado principalmente nas questões referentes à filosofia da
ciência.
Mostrar,
a partir da análise do conjunto de sua obra, do potencial metodológico
implícito na sua epistemologia e filosofia das ciências, a noção da “construção
do objeto científico”, a noção da “construção da alma ou do espírito científico”,
entendidas como uma crítica a algumas perspectivas epistemológicas adotadas até
então.
Mostrar
que com os principais conceitos desenvolvidos por ele na sua epistemologia –
ruptura, vigilância, obstáculo, problemática e recorrência epistemológica -,
ele procurou dar a esta ciência nascente, uma filosofia compatível com a
revolução científica promovida no início do século XX, particularmente a partir
da Teoria da Relatividade, formulada
por Albert Einstein.
E
dizer, mostrar que, partindo deste objetivo, Bachelard formula suas principais
proposições para a filosofia das ciências, a partir da historicidade da
epistemologia e da relatividade do objeto, rompendo com as ciências anteriores
em termos epistemológicos e tecendo críticas à postura empirista que adotavam,
uma vez que, para ele, o seu objeto encontra-se em relação e não pode mais ser
considerado absoluto, afirmando que o novo espírito científico encontra-se em
descontinuidade, em ruptura com o senso comum, tido por ele como repleto de
preconceitos, baseados em boa medida nos limites do empirismo.
2
– SOBRE A OBRA DE GASTON BACHELARD
Historicamente, vê-se
que Bachelard viveu numa época de amadurecimento da ciência, que podemos
inferir por Revolução Científica do Século XX, onde pode presenciar a discussão
sobre o surgimento e as implicações da física relativista, com a consequente
quebra do empirismo, uma vez que o objeto de estudo dependia agora do
referencial e, assim, não podia mais ser considerado absoluto, como ele mesmo
descreve ao “rotular de modo grosseiro as diferentes etapas históricas do
pensamento científico”:
O primeiro período, que
representa o estado pré-científico, compreenderia tanto a Antiguidade clássica
quanto os séculos de renascimento e de novas buscas, como os séculos XVI, XVII
e até XVIII. O segundo período, que representa o estado científico, em preparação
no fim do século XVIII, se estenderia por todo o século XIX e início do século
XX. Em terceiro lugar, consideraríamos o ano de 1905 como o início da era do novo espírito científico, momento em que
a Relatividade de Einstein deforma conceitos primordiais que eram tidos como
fixados para sempre.
(BACHELARD, 1996, p 9)
Sua obra pode ser dividida, ainda que de forma didática,
em duas fases: a obra diurna (epistemologia e história das ciências) e a obra
noturna, que remete ao estudo no âmbito da imaginação poética, dos devaneios e
dos sonhos.
Dentre as obras diurnas se destacam: “O novo
espírito científico”, de 1934; “A
formação do espírito científico”, de 1938 (objeto central de nosso estudo);
“A filosofia do não”, de 1940; “O racionalismo aplicado”, de 1949 e “O Materialismo racional”, de 1952.
Dentre as obras noturnas destacam-se “A
psicanálise do fogo”, de 1938; “A
água dos sonhos”, de 1942; “O ar e os
sonhos”, de 1943; “A terra e os devaneios
da vontade”, de 1948; “A poética do
espaço”, de 1957.
Bachelard
expôs um racionalismo dialético, um diálogo entre a razão e a experiência,
partindo do ponto de vista de que a descoberta racional é um processo pelo qual
o conhecimento novo é assimilado a um sistema que muda apenas na medida em que
cresce, rejeitando o conceito cartesiano de que as verdades científicas são
partes imutáveis que se somam para alcançar uma “verdade total”, da mesma forma
que refutava o empirismo de Bacon, pautado em seus ídolos.[1]
3
– CRÍTICAS ÀS FILOSOFIAS VIGENTES E A CONSTRUÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO
No embate que Bachelard
travou contra as filosofias do imobilismo, que defendiam, entre outras coisas,
que existe uma continuidade entre senso comum e ciência, ele apontava para a
descontinuidade entre o conhecimento científico e o conhecimento comum, onde o
primeiro se constrói através da negação da experiência primeira, entendida como
a primeira observação, a experiência colocada antes e acima da crítica.
Para ele, a superação do empirismo se dá através do
racionalismo, onde a postura epistemológica do novo cientista proclama-se no
primado da realização sobre a realidade, ou seja, o cientista aproxima-se do
objeto não mais por métodos baseados nos sentidos, na experiência comum, mas
pela teoria, mediada pela razão.
A ciência da realidade já
não se contenta com o como fenomenológico; ela procura o porquê matemático.
(Ibidem, p 8)
Para Bachelard, no pensamento pré-científico, não se
procura a variação, mas a variedade, o que leva o espírito de um objeto para o
outro, sem método, onde o espírito procura apenas ampliar conceitos e a
variação liga-se a um fenômeno particular. Por sua vez, no estado científico do
pensamento, a ciência, como um todo, interessa a todos os homens cultos e a
ideia dominante é a de que um gabinete de história ou um laboratório, montados
como se fossem uma biblioteca, aos poucos, estabeleçam, quase que
automaticamente, as ligações entre os achados individuais.
Finalmente, na terceira etapa histórica do pensamento
científico, o espírito científico passaria necessariamente pelos estados
concreto, em que o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno e
se apoia numa literatura filosófica que exalta a natureza; pelo estado concreto-abstrato,
em que o espírito acrescenta à experiência física esquemas geométricos e se
apoia numa filosofia da simplicidade e no estado abstrato, em que o espírito
adota informações voluntariamente subtraídas à intuição no espaço real,
desligadas da experiência imediata.
Bachelard coloca ainda que, o espírito científico proíbe
que se forme opiniões sobre questões que não compreendemos, sobre questões que
não sabemos formular com clareza, evidenciando a necessidade de que é preciso
saber formular com clareza os problemas.
Para o espírito
científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta,
não pode haver conhecimento científico. (Ibidem, p 18)
Neste momento, a noção de obstáculo epistemológico ganha,
para Bachelard, fundamental importância para o desenvolvimento de conhecimento
no âmbito das pesquisas onde, o pesquisador, ao olhar seu objeto de estudo,
pode incorrer no perigo de se deixar levar pelo que lhe é visível, dando-lhe um
status de verdade, que ele pode não ter. Para ele é na superação destes
obstáculos que reside o sucesso de uma pesquisa científica e a primeira
advertência que faz é a necessidade de que os cientistas tenham consciência de
que se eles não forem neutralizados, todo o processo de pesquisa ficará
comprometido. Dos fundamentos ao resultado.
Este primeiro obstáculo, que ele define por realidade,
está intimamente ligado às críticas que ele faz ao empirismo. Bachelard dá
especial importância a este obstáculo porque, para ele, diante do real, é
praticamente impossível anular, de uma só vez, todos os conhecimentos
habituais. Diante do real, aquilo que acreditamos saber ofusca aquilo que
deveríamos saber. Ao designar objetos segundo sua utilidade, deixamos de
conhecê-los; temos somente uma opinião sobre eles e o espírito científico
proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não compreendemos, uma
constatação à qual o próprio Sócrates já havia chegado.
O conhecimento do real é
luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações
do real são recorrentes. O real nunca é “o que se poderia achar ”, mas sempre o
que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando
o conjunto de argumentos fica estabelecido. [...] No fundo, o ato de conhecer
dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal
estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à
espiritualização. (Ibidem, p 17)
O segundo obstáculo epistemológico, o senso comum,
semelhante ao primeiro, relaciona-se especificamente coma dificuldade com a
qual se depara o cientista que precisa separar o seu conhecimento comum, suas
opiniões, seus preconceitos, as avaliações relacionadas à sua posição social ou
econômica, do conhecimento teórico, científico, que deve estar comprometido com
a busca da verdade, baseada em leis gerais, em conceitos e não em preconceitos.
Neste contexto, poderíamos associar o trabalho de Thomas
Kuhn (1922/1996), um físico e filósofo da ciência, que abordou a questão dos
paradigmas, como modelos de práxis efetiva, reconhecidos como válidos e que dão
origem a tradições de pesquisa científica, como um dos obstáculos descritos por
Bachelard, formadores de preconceitos nos quais o cientista fica preso até que
uma ruptura deste paradigma (revolução científica) o liberte.
Hábitos intelectuais que
foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa. (Ibidem, p 19)
Bachelard fala também sobre o obstáculo do conhecimento
geral ao conhecimento científico, uma vez que ele suspende a experiência e
suprime a abstração científica verdadeiramente sadia. Neste ponto, ele realiza
uma forte crítica ao sistema educacional que informa aos estudantes, de forma
quase dogmática, conceitos aos quais eles deveriam chegar de forma crítica.
Fala também do obstáculo verbal, quando o uso inadequado
de um termo qualquer, um substantivo que pode ser adjetivado, é utilizado sem o
devido cuidado de ser corretamente contextualizado, provocando uma distorção da
imagem real do objeto estudado.
Uma ciência que aceita as
imagens é, mais que qualquer outra, vítima das metáforas. Por isso, o espírito
científico deve lutar sempre contra as imagens, contra as analogias, contra as
metáforas. (Ibidem, p.48)
Bachelard alerta ainda para o fato de que, normalmente,
os homens tendem a ceder àquilo que ele chamou de instinto conservativo, em
detrimento do instinto formativo e que mesmo o cientista mais dedicado, com o
tempo acaba fatalmente cedendo a conceitos anteriormente aceitos, quando então
o instinto conservativo faz cessar o seu crescimento espiritual.
Aqui, neste ponto, Bachelard detalha a diferença
conceitual sobre o espistemólogo e o historiador da ciência. Para ele, o historiador da ciência deve tomar
as ideias como se fossem fatos e o espistemólogo deve tomar os fatos como se
fossem ideias, inserindo-as num sistema de pensamento. Em suas palavras
Um fato mal interpretado
por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o espistemólogo, é
um obstáculo, um contra pensamento. É sobretudo ao aprofundar a noção de
obstáculo epistemológico que se confere pleno valor espiritual à história do
pensamento científico. (Ibidem, p 22)
4
- CONCLUSÃO
Diante do que foi
exposto, concluímos que a epistemologia bachelardiana ainda está presente e
atuante no meio científico, onde apresenta contribuições significativas,
rompendo com o imobilismo metodológico vigente antes dele, ao inaugurar a
filosofia do inexato, onde o conhecimento constitui-se por meio de aproximações
contínuas, viabilizadas pelo conhecimento teórico e pela aplicação técnica.
Neste contexto, o objeto não é mais dado, mas construído
denotando uma supremacia do conhecimento abstrato e científico sobre aquilo que
ele chamou de conhecimento primeiro e intuitivo, aquele que é imediato, não
discursivo.
Ou seja, Bachelard apresenta seu espectro epistemológico,
afirmando que a ciência oscila dentro de um espectro pré-definido; destacando o
pluralismo das ciências; apontando que a filosofia da ciência é, por natureza,
aberta; apontando para a existência de obstáculos epistemológicos, onde o
primeiro a ser superado é a experiência primeira, a destruição das opiniões;
afirmando que o espírito científico deve formar-se reformando-se e não
aceitando nada como definitivo e que tudo aquilo que sabemos, nosso
conhecimento científico, é sempre fruto de uma desilusão com aquilo que
julgávamos saber frente aquilo que deveríamos saber.
5 – REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico Trad.
Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996
- BACON, Francis. Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis
de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1988 – Coleção os Pensadores
- CAVAILLÈS, Jean. Obras Completas de Filosofia das Ciências. Trad.
Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2012
- GREGO, John. SOSA,
Ernest. Compêndio de Epistemologia. Trad.
Alessandra Siedschlag Fernandes. São Paulo: Edições Loyola, 2012
[1] A principal diferença entre Bacon e Descartes está na
posição que eles assumem em relação aos sentidos e ao intelecto na aquisição de
conhecimento. Enquanto que, para Descartes, os sentidos possuem uma natureza
enganadora e o intelecto é limitado, para Bacon o problema não está na natureza
dos sentidos nem na limitação do intelecto, mas em seus usos indevidos. O
método proposto por Bacon consiste basicamente na indução verdadeira e na
demonstração experimental, entendendo-se por indução verdadeira um tipo de
raciocínio composto por premissas cuja fonte de observação é empírica, regular
e sistemática, das quais se realiza um salto inferencial para se alcançar uma
proposição geral. Uma vez extraída uma conclusão de cunho generalizante, que
deve ser demonstrada experimentalmente, obtém-se o que Bacon denominou de
axioma científico. Para Bacon, os sentidos e o intelecto não podem agir sem
auxilio metodológico, e isso se deve à presença na mente humana de ídolos,
noções falsas que habitam a mente humana e obstruem o acesso à verdade. Para
ele, existem quatro tipos de ídolos: 1) os Ídolos da Tribo, que dizem respeito
à natureza humana, cuja ordem é inferior à ordem da natureza e, por isso, todas
as percepções dos sentidos e da mente ao fazerem analogia com a própria
natureza humana e não com a ordem natural criam distorções entre o que é
percebido e o que é da ordem da natureza. 2) Ídolos da Caverna, que versam
sobre o homem enquanto indivíduo. Dado que o homem é singular e possui, em
virtude de sua formação, diferentes impressões sobre os fatos, o homem
inclina-se a buscar o conhecimento em seus próprios mundos e não no universal.
3) Ídolos do Foro, que dizem respeito à associação recíproca entre os homens
através do discurso, onde as palavras comportam uma multiplicidade de sentidos.
4) Ídolos do Teatro, que se encontram associados às antigas doutrinas
filosóficas que, por não utilizarem os auxílios metodológicos, figuram mundos
fictícios.
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