O presente trabalho
espera poder apresentar, de forma sucinta, as considerações desenvolvidas por
Pierre Bourdieu sobre o efeito reprodutor e legitimador das desigualdades sociais
promovidos pela escola, pública ou privada que, corrobora e de certa forma contribui
para tornar verdadeiras as alegações de Antonio Gramsci sobre o controle
hegemônico cultural imposto pelas classes dominantes às classes menos
favorecidas.
Pierre
Bourdieu (1930/2002), um importante sociólogo francês, docente da École de
Sociologie du Collège de France, teve o mérito de formular uma resposta
original, abrangente e bem fundamentada, para o problema das desigualdades
escolares.
Até
pouco após a primeira metade do século XX, predominava nas Ciências Sociais e
mesmo no senso-comum uma visão de inspiração funcionalista, extremamente
otimista, que atribuía à escolarização um papel central no processo de
superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios associados às
sociedades tradicionais.
Supunha-se,
à época, que por meio da escola pública e gratuita seria resolvido o problema
de acesso à educação, garantindo-se, em princípio, a igualdade de oportunidades
entre todos os cidadãos, um pilar considerado basilar para a construção de uma
nova sociedade, mais justa (meritocracia), moderna (centrada na razão e nos
conhecimentos científicos) e democrática (fundamentada na autonomia
individual).
Ocorreu
que, nos anos 60, instalou-se uma profunda crise acerca dessa concepção de
escola, provocando por sua vez, a necessidade de uma reinterpretação do papel
dos sistemas de ensino na sociedade.
Percebeu-se,
então, de forma clara, o peso da origem social, da classe, da etnia, do gênero
sexual e do local de moradia dos alunos, sobre seu desempenho escolar,
reconhecendo-se, a partir daí, que o sucesso da educação não dependia, tão
simplesmente, dos dons individuais dos alunos.
A
isto se acrescenta o progressivo sentimento de frustração que se via despontar
nos estudantes, principalmente franceses, com o caráter autoritário e elitista
do sistema educacional, agravado pelos efeitos inesperados da massificação do
ensino, que provocou o baixo retorno social e econômico auferido pelos
certificados escolares no mercado de trabalho.
Em
sua análise, Bourdieu nos oferece uma nova interpretação da escola e da
educação onde, o que se via como igualdade de oportunidades, meritocracia,
justiça social, passa a ser compreendido como uma simples reprodução e legitimação
das desigualdades sociais existentes.
A
educação, na teoria de Bourdieu, perde o papel que lhe fora atribuído de
instância transformadora e democratizadora das sociedades e passa a ser vista
como uma das principais instituições por meio da qual se mantém e se legitimam
os privilégios sociais.
Para
ele, a educação, assim colocada, aproxima-se dos pressupostos defendidos por
Émile Durkheim, para quem o processo educativo vem a ser a incorporação do
indivíduo das representações coletivas constitutivas da sociedade, consistindo
num esforço contínuo para impor ao estudante seus valores, seu modo de ver e de
agir.
Igualmente,
sua denúncia se aproxima da realizada por Max Weber, de que a educação, enquanto
processo formal de aprendizagem, está envolvida numa pedagogia de treinamento
que visa apenas formar o especialista, aquele que vai ocupar um lugar na vasta
organização de uma grande empresa ou órgão público.
Bourdieu
inova ao considerar em suas análises e reflexões o tema da constituição
diferenciada dos atores segundo sua origem social e familiar, associando-as ao
comportamento escolar e às repercussões dessa formação diferenciada.
Para
Bourdieu, a escola, ao definir seu currículo, seus métodos de ensino e suas
formas de avaliação, cumpriria o papel fundamental de legitimação dessas
desigualdades, ao dissimular as bases sociais destas, convertendo-os em
diferenças acadêmicas e cognitivas, relacionadas aos méritos e dons individuais.
O
indivíduo, para Bourdieu, é um ator socialmente configurado em seus mínimos
detalhes, onde, seus gostos, preferências, aptidões, posturas corporais e
aspirações relativas ao futuro profissional seriam socialmente constituídos.
Bourdieu
afirma que a ação das estruturas sociais sobre o comportamento individual se dá
preponderantemente de dentro para fora, e não o inverso.
A
partir de sua formação inicial em um ambiente social e familiar que corresponde
a uma posição específica na estrutura social, os indivíduos incorporariam um
conjunto de disposições para a ação típica dessa posição (um “habitus” familiar
ou de classe) que passaria a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais variados
ambientes de ação.
Desta
forma, a estrutura social se perpetuaria, até mesmo, porque os próprios indivíduos
tenderiam a atualizá-la ao agirem de acordo com o conjunto de disposições típicas
da posição estrutural na qual eles foram socializados.
Essas
disposições não seriam normas rígidas e detalhadas de ação, mas princípios de
orientação que precisariam ser adaptados pelo sujeito às variadas circunstâncias
de ação.
Ou
seja, para o campo da Sociologia da Educação, cada indivíduo passa a ser caracterizado
por uma bagagem socialmente herdada.
Constitui
essa bagagem, o capital econômico, tomado em termos dos bens e serviços a que
ele dá acesso; o capital social, definido como um conjunto de relacionamentos
sociais influentes mantidos pela família, além do capital cultural, institucionalizado,
formado por títulos escolares.
Coloca-se
aqui, um aparte para realçar o papel de dominação cultural, hegemônica,
exercido pela escola, que tenta chamar para si o direito exclusivo de difundir
e controlar a produção do conhecimento, exercendo o monopólio da emissão dos
diplomas.
A
Sociologia da Educação de Bourdieu se notabiliza, justamente, pela diminuição
que promove do peso do fator econômico, comparativamente ao cultural, na explicação
das desigualdades escolares.
A
posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que
facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e códigos escolares.
As
referências culturais, os conhecimentos considerados legítimos, o domínio maior
ou menor da língua, trazidos de casa por certos alunos, facilitariam o aprendizado
escolar na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundo familiar e a
cultura da escola onde, no caso dos estudantes oriundos de meios culturalmente
favorecidos, a educação escolar seria uma espécie de continuação da educação
familiar.
Esse
capital cultural é fruto da experiência escolar vividas pelos pais ao qual se
soma o contato pessoal com professores, amigos ou parentes que possuem
familiaridade com o sistema educacional.
O
capital econômico e o social funcionariam, na verdade, apenas como meios
auxiliares na acumulação do capital cultural.
Segundo
Bourdieu, cada grupo social, em função das condições objetivas que caracterizam
sua posição na estrutura social, constituiria um sistema específico de disposições
para a ação, que seria transmitido aos indivíduos na forma de “habitus”.
A
ideia de Bourdieu é a de que, isto ocorre pelo acúmulo histórico de experiências,
de êxito e de fracasso, relativo ao que é possível ou não de ser alcançado
pelos seus membros, dentro da realidade social concreta, na qual eles agem.
Aplicado
à educação, esse raciocínio indica que os grupos sociais constituem uma
estimativa de suas chances objetivas no universo escolar e passam a adequar
seus investimentos a essas chances.
Isso
significa que os membros de cada grupo social tenderão a investir uma parcela
maior ou menor dos seus esforços, medidos em termos de tempo, dedicação e
recursos financeiros, na carreira escolar de seus filhos, conforme percebam
serem maiores ou menores as probabilidades de êxito.
Assim,
as elites econômicas, por exemplo, não precisariam investir tão pesadamente na
escolarização de seus filhos quanto certas frações das classes médias que devem
sua posição social, quase que exclusivamente, à certificação escolar.
Paradoxalmente,
o modelo nivelador da educação formal, segundo as leis do mercado, da oferta e
da procura, acaba por transformar o acesso fácil a um título escolar, em algo
desvalorizado em função de sua quantidade (não em função do seu custo de obtenção),
tornando-se (o diploma) em mais um objeto que permite a exploração do homem
pelo homem, ou seja, uma forma adicional para a obtenção da “mais valia” nos
critérios e moldes denunciados por Marx.
Bourdieu
distingue em sua obra três conjuntos de disposições e de estratégias de
investimento escolar, segundo a classe social.
O
primeiro grupo, pobre em capital econômico e cultural, tenderia a investir,
segundo ele, de modo moderado no sistema de ensino, o que é explicado em boa
parte pela percepção, a partir dos exemplos acumulados, de que as chances de
sucesso são reduzidas, com retorno incerto do investimento e de risco elevado.
Essas
famílias estariam, em função de sua condição socioeconômica, menos preparadas
para suportar os custos envolvidos de um longo período para a formação escolar
de seus filhos.
Diante
disso, esse grupo social tenderia a adotar o que Bourdieu chama de “liberalismo”
em relação à educação dos filhos, onde, a vida escolar destes não seria
acompanhada de modo sistemático e nem haveria, por parte dos pais, uma cobrança
intensiva em relação ao sucesso alcançado, esperando-se que eles estudassem apenas
o suficiente para que possam se manter ou para que consigam elevar-se
ligeiramente, em relação ao nível socioeconômico da família, privilegiando-se,
na maioria das vezes, carreiras escolares mais curtas e que dão acesso mais rápido
à inserção profissional.
Contrapondo-se
às classes populares, as classes médias tenderiam, por sua vez, a investir
pesada e sistematicamente na escolarização dos filhos.
As
famílias desse grupo social já possuiriam um volume razoável de capitais que
lhes permitiria apostar no mercado escolar sem correrem tantos riscos.
No
entanto, o comportamento das famílias das classes médias não pode ser explicado
apenas pelas chances comparativamente superiores dos filhos dessas famílias
alcançarem o sucesso escolar, sendo necessário considerar, igualmente, as
expectativas quanto ao futuro sustentadas por esses grupos sociais, que nutrem
a esperança de continuar sua ascensão social, em direção às elites.
Bourdieu
destaca, como componentes desse esforço, o ascetismo, o malthusianismo e a boa
vontade cultural.
O
ascetismo, caracterizado pela disposição das classes médias para renunciarem
aos prazeres imediatos em benefício do seu projeto futuro.
O
malthusianismo, caracterizado pela propensão ao controle da fecundidade, como
estratégia inconsciente de concentração dos investimentos.
Finalmente,
a boa vontade cultural, caracterizada pelo reconhecimento da cultura legítima e
pelo esforço sistemático para adquiri-la.
Embora,
de um modo geral, possa se falar que a aspiração por ascensão social, que
caracteriza as classes médias conduz à tendência de se investir fortemente na
educação dos filhos, não se pode esquecer que o grau em que isso ocorre
dependeria, também, do peso relativo dos capitais em cada uma das frações da
classe média.
As
frações mais providas de capital econômico, ao contrário das que possuem quase
que exclusivamente capital cultural, tenderiam a não conceder uma prioridade tão
acentuada ao investimento escolar.
Bourdieu
se refere, finalmente, às elites econômicas e culturais, que investem
pesadamente na escola, porém, de uma forma bem mais descontraída.
Os
críticos das ideias de Bourdieu, de sua teoria das classes sociais,
particularmente no que diz respeito aos processos de formação e de transmissão
do “habitus” familiar, pautam-se na tese de que esse “habitus” são seria transmitido
aos filhos de modo automático, sendo necessário, antes, estudar a dinâmica
interna de cada família; as relações de interdependência social e afetiva entre
seus membros, etc.
Para
eles, a transmissão do capital cultural só poderia ser feita por meio de um
contato prolongado e afetivamente significativo.
O
ponto de partida do raciocínio de Bourdieu para afirmar que a escola seria uma
instituição a serviço da reprodução e legitimação da dominação exercida pelas
classes dominantes se aproxima, aqui, de uma concepção antropológica de
cultura, onde, apesar de arbitrários, esses valores, a cultura de cada grupo
social, seriam vividos como os únicos possíveis.
No
caso das sociedades de classes, a capacidade de legitimação de um arbitrário
cultural corresponderia à força da classe social que o sustenta.
Neste
ponto, concordando com o conceito da dominação pela imposição hegemônica da
cultura pelas classes dominantes, denunciada por Gramsci, para Bourdieu, a
cultura escolar, socialmente legitimada, seria basicamente, a cultura imposta
como legítima pelas classes dominantes.
Bourdieu
observa, no entanto, que a autoridade pedagógica só pode ser garantida na
medida em que o caráter arbitrário e socialmente imposto da cultura escolar é
dissimulado, apresentando-se como neutra.
Uma
vez reconhecida como legítima e portadora de um discurso não arbitrário e
socialmente neutro, a escola passa a poder exercer, livre de qualquer suspeita,
suas funções de reprodução e legitimação das desigualdades sociais.
Tratando
formalmente de modo igual, em direitos e deveres, quem é diferente, a escola
privilegiaria, dissimuladamente, quem, por sua bagagem familiar, já é
privilegiado.
Mais
concretamente, Bourdieu observa que a comunicação pedagógica, tal como
realizada tradicionalmente na escola, exige implicitamente, para o seu pleno
aproveitamento, o domínio prévio de um conjunto de habilidades e referências
culturais, que apenas os membros das classes mais privilegiadas possuiriam.
Ao
dissimular que sua cultura é a cultura das classes dominantes, a escola
dissimula igualmente os efeitos que isso tem para o sucesso escolar das classes
dominantes.
As
diferenças nos resultados escolares tenderiam a ser vistas como diferenças de
capacidade, enquanto que, na realidade, decorreriam da maior ou menor
proximidade entre a cultura escolar e a cultura familiar do aluno.
Nessa
condição, o estudante oriundo das classes menos favorecidas, sendo incapaz de
perceber o caráter arbitrário e impositivo da cultura escolar, acaba por
aceitar que suas dificuldades escolares são consequência de uma inferioridade
que lhe seria inerente.
Para
Bourdieu, a reprodução e a legitimação das desigualdades sociais propiciada
pela escola não resultariam apenas, no entanto, da falta de uma bagagem cultural
apropriada para a recepção da mensagem escolar, mas também de um modo específico
de se relacionar com a cultura e com o saber.
O
sistema de ensino valorizaria e cobraria dos alunos uma destreza verbal e um
brilho no trato com o saber e a cultura que, somente aqueles que têm familiaridade
com a cultura dominante, podem oferecer.
Para
Bourdieu, as posições mais elevadas e prestigiadas dentro do sistema de ensino
tendem a ser ocupadas pelos indivíduos pertencentes aos grupos socialmente
dominantes e, segundo ele, por mais que se democratize o acesso ao ensino por
meio da escola pública e gratuita, continuará existindo uma forte correlação
entre as desigualdades sociais, sobretudo, culturais, e as desigualdades ou
hierarquias internas ao sistema de ensino.
A
grande contribuição de Bourdieu para a compreensão sociológica da escola foi a
de ter ressaltado que essa instituição não é neutra.
Os
conteúdos curriculares seriam selecionados em função dos valores, dos conhecimentos,
e dos interesses das classes dominantes.
Prevalece
na obra de Bourdieu a percepção de que o processo de reprodução das estruturas
sociais por meio da escola é, basicamente, inevitável.
Essa
análise, feita no plano macrossocial das relações entre as classes, na visão de
Bourdieu, tem, assim, boas razões para ser pessimista.
No
entanto, no plano microssociológico, influenciado individualmente por cada
escola, por cada professor, este efeito poderia ser atenuado.
Infelizmente,
novamente recorrendo a Gramsci e a sua denúncia do controle hegemônico cultural
exercido pelas classes dominantes, até mesmo os melhores professores, aqueles
melhor qualificados, tendem a ser contratados por instituições privadas que,
oferecendo melhores salários e condições de trabalho, acabam por diferenciar a
prática pedagógica, beneficiando as elites, que podem pagar por um ensino de
melhor qualidade.
Professor Orosco
Professor Orosco
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes,
1998.
NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins e
Maria Alice. A Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu: Limites e Contribuições.
Revista Educação e Sociedade, ano XXIII,
n 78, Abril, 2002.
OROSCO, José Carlos. Euskadi. São Paulo: Editora Java, 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário