segunda-feira, 21 de abril de 2014

VIDA E OBRA DE NICOLAU MAQUIAVEL


            Nicolau Maquiavel (1469/1527), historiador, poeta, diplomata e músico, reconhecido como o fundador do pensamento e da ciência política moderna, pelo fato de ter escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser.
            Como um político que escreveu sobre problemas políticos do momento histórico em que viveu, numa Itália fracionada em pequenos principados, sua obra, muitas vezes considerada enigmática e de difícil compreensão, para poder ser compreendida corretamente precisa ser contextualizada no período em que ele a escreveu, levando-se em consideração, além dos aspectos econômicos, militares, religiosos, também os personagens que com ele interagiram e que, de alguma forma, influenciaram seu pensamento.
            É preciso ter em mente que, durante o Renascimento, a Península Itálica tinha conflitos de interesses entre as cinco principais potências: o Ducado de Milão, a República de Veneza, a República de Florença, o Reino de Nápoles e os Estados Pontifícios.
            Os Estados Pontifícios eram formados por um aglomerado de territórios, no centro da península itálica, que se mantiveram como estado independente entre os anos de 756 e 1870, sob a autoridade do Papa, e cuja capital era Roma.
            Estas potências, incapazes de se aliar durante muito tempo, estando entregues às intrigas diplomáticas e às disputas regionais, eram atrativas para as demais potências europeias do período, principalmente Espanha e França.
            A política italiana era, portanto, muito complexa e os interesses políticos estavam sempre divididos e sua unidade política esfacelara-se no confronto com o particularismo das cidades.
            Maquiavel era o terceiro de quatro filhos do casal Bernardo e Bartolomea de Nelli, de origem Toscana, antiga e empobrecida, tendo iniciado seus estudos de latim aos sete anos, e sua educação, de forma geral, quando comparada à dos outros humanistas, podendo ser considerada fraca.
            Maquiavel viveu sua juventude sob o esplendor político da República Florentina durante o governo de Lourenço de Médice, entrando para a política somente aos 29 anos de idade, no cargo de Secretário da Segunda Chancelaria.
            A Primeira Chancelaria era responsável pela política externa e pela correspondência com o exterior.
            A Segunda Chancelaria ocupava-se com as guerras e a política interna.
            Lourenço de Médice, apelidado de “O Magnífico”, praticamente iniciou o movimento renascentista que, rejeitando a ciência escolástica e teológica, valorizava a pesquisa e a cogitação do sentido da vida, colocando o Homem no centro do universo.
            Depois do tratado de Lodi, que pôs termo à guerra de Milão e Florença contra Veneza (1453), tornara-se impossível a unificação sob a hegemonia de qualquer dos três mais importantes Estados Italianos.
            O papa, a Alemanha, a França e a Espanha disputavam a supremacia política na península.
            De um lado Milão, Florença, Mantua e Gênova, e do outro Veneza, Nápoles, Saboya e Monteferrato, eram as cidades envolvidas nas guerras que provocavam a desunião na Itália.
            Veneza, Florença e Milão haviam estabelecido uma aliança para manter o poder dos Estados Italianos, que ganhou a adesão das outras cidades.
            Esta aliança, firmada pelo Tratado de Lodi (30 de Agosto de 1454) trouxe paz para a região, de tal sorte que o Papa Nicolas V proclamou a Liga Itálica.
            Sobre esta unidade, Lourenço de Médice construiu sua política externa, e paz dela obtida, duraria até pouco após sua morte.
            Sob seu governo, as forças progressivas do desenvolvimento, a navegação e a circulação geral expandiram-se livremente, tendo o capitalismo interesses coincidentes com os do Estado na sua oposição às forças descentralizadoras da economia urbana.         
            A corte artístico-cultural florentina patrocinada por ele ficou conhecida como “movimento neoplatônico”.
            Sob sua proteção, Marcílio Ficino traduziu o grego ao latim o “Corpus Hermeticum” (editado em Florença no ano de 1471); Pico della Mirandola escapou da acusação de heresia pelo seu trabalho de cristianização da kaballah hebraica e Michelangelo, que viveu em sua companhia de Lourenço de Médice por 5 anos, iniciou seus estudos em um ateliê financiado ele.
            Foi Michelangelo quem desenhou e esculpiu a Capela Médicea da Igreja de San Lorenzo de Florença.
            Lourenço de Médice, neto de Cosme de Médice (o velho) e filho de Pedro de Médice, casou-se com Clarice Orsini, em 1469, com quem teve sete filhos, um deles, João Lourenço de Médice,que viria a se transformar no Papa Leão X.
            Com a morte do pai, foi designado junto com seu irmão Juliano, “príncipes do Estado”.
            Em 26 de Abril de 1478, eclodiu em Florença a conspiração dos Pazzi, assim chamada em alusão à família envolvida no movimento, instigada pelos Salviati, banqueiros do Papa Sisto IV, inimigo dos Médice.
            O Papa havia comprado de Milão o senhorio de Imola, uma fortaleza na fronteira entre Papal e Toscano, território que Lourenço de Médice queria para Florença.
            A compra foi financiada pelo banco Pazzi, apesar de Francesco de Pazzi ter prometido aos Médice que não ajudaria o Papa.
            Como recompensa, o Papa Sisto IV concedeu aos Pazzi o monopólio nas alum minas de Tolfa (alum era um elemento essencial para a tinturaria têxtil, que foi fundamental na economia florentina).
            Nomeou também seu sobrinho, Girolamo Riário como novo governador de Imola e Francesco Salviati como arcebispo de Pisa.
            No domingo de 26 de Abril de 1478, durante a missa solene na Catedral, os irmãos Médice foram agredidos, tendo sido Juliano morto, esfaqueado por Bernardo Bandi e Francesco de Pazzi.
            Tendo sobrevivido ao ataque, Lourenço de Médice resistiu à tentativa de golpe e os seus agressores acabaram mortos pela população enraivecida.
            No rescaldo da “Conspiração Pazzi”, o Papa Sisto IV colocou Florença sob interdição, proibindo missas e comunhão, convocando ainda o Rei de Nápoles, Fernando I para atacar a cidade.
            Diante desta ameaça, Lourenço de Médice, colocando-se voluntariamente prisioneiro de Fernando I, conseguiu convencê-lo do perigo que o Papa representava (poderia mais tarde voltar-se contra ele), sendo solto após três meses de cativeiro, e evitando a guerra.
            Segundo Maquiavel, Lourenço de Médice expôs a própria vida para restaurar a paz, indo negociar pessoalmente condições favoráveis.
            A influência de Lourenço de Médice havia impedido a invasão e, em geral, ele manteve a política de seu avô, embora menos prudente e mais disposto à tirania.
            Lourenço adotou o sobrinho Julio, filho ilegítimo de seu irmão Juliano, o qual viria a ser coroado Papa, adotando o nome de Clemente VII.
            Da casa dos Médice provieram quatro Papas:
            João de Médice (1475/1521) – Papa Leão X (1513/1521),
            Júlio de Médice (1478/1534) – Papa Clemente VII (1523/1584),
            João de Ângelo de Médice (1499/1565) – Papa Pio IV (1559/1565) e
            Alexandre Otaviano de Médice (1535/1605) – Papa Leão XI (1605).
            Com a morte de Lourenço de Médice em 1492, e a inaptidão de seu filho Pedro Lourenço de Médice, a Itália foi invadida por Carlos VIII, da França, provocando a expulsão dos Médice de Florença.
            Pedro de Médice (1471/1503), o filho mais velho de Lourenço e irmão do Papa Leão X, apesar da especial preparação que lhe havia sido dispensada pelo pai, sempre manifestou um caráter débil, arrogante e indisciplinado.
            Sem conseguir resistir às exigências de Carlos VIII, abandonou Florença que, estava sob influência de Girolamo Savanarola, exilando-se com sua família e vendo instalar-se a República na cidade.
            Girolamo Savanarola (1452/1498) foi o mais controvertido reformador “dominicano” que chegou a governar Florença.
            Sentindo profundamente a perda de valores espirituais trazida pelo ideal do Renascimento, mostrando-se incapaz de compreender e aceitar a nova sociedade, como evidencia no seu poema “No declínio da Igreja”, que escreveu no primeiro ano de sua vida monástica, começou a escrever tratados religiosos baseados em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.
            Em 1481, o seu superior designou-o para pregar em Florença.
            Neste centro do Renascimento, de imediato opôs-se energicamente à vida profana e pagã e acusou a moralidade prevalente nas classes sociais, especialmente na corte de Lourenço de Médice.
            Anunciando a chegada de Carlos VIII como um salvador, contrário aos Médice e com grande apoio popular, o pregador Girolamo Savanarola tornou-se a figura mais importante na cidade, dando ao governo um viés teocrático-democrático.
            Com sua crescente autoridade e influência, Savanarola passou a criticar os padres de Roma como corruptos e o Papa Alexandre VI por seu nepotismo e imoralidade.
            Acabou excomungado em 12 de Maio de 1497, preso por ordem papal, sofrendo tortura e condenado à morte, morrendo queimado em 1498.
            Seu maior mérito religioso foi denunciar os males da Igreja Católica Romana e suas reformas políticas moralizadoras locais.
            Não deixou de ser o precursor da Grande Reforma Protestante que seria iniciada por Martinho Luthero (1483/1546), que dividiria a Igreja do Ocidente.
            Com a demissão de seus simpatizantes, cinco dias depois de sua morte, Maquiavel, já um homem maduro, foi nomeado para o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria de Florença.
            Em 1501, casou-se com Marietta Corsini, com quem teria quatro filhos e duas filhas.
            Em 1502 e 1503, Maquiavel teve contato com César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI.
            César Bórgia, por volta de 1501, como líder da Igreja e filho do Papa, vinha conquistando territórios na Toscana.
            Acercou-se de Florença com seus exércitos e exigiu que a cidade se aliasse a ele, pagasse-lhe um tributo e mudasse seu governo para um mais favorável a si.
            Pela pressão do rei de França Luis XII, César Bórgia foi obrigado a retroceder em sua campanha, exigindo, antes, o envio de representantes florentinos para tratar de seus interesses.
            Para esta missão, em 24 de Junho de 1502, foi enviado Francisco Soderini, tendo Maquiavel como secretário e auxílio.
            Com a morte de Alexandre VI e tendo Júlio II se tornado Papa, César Bórgia perdeu seu apoio e veio a se enfraquecer.
            Feito prisioneiro duas vezes, morreu lutando pelo exército de Navarra, mas sua figura ficaria marcada para Maquiavel, servindo de inspiração para sua obra mais famosa, “O Príncipe”.
            O Papa Julio II, formou a liga de Cambrai, em 1508, cujo objetivo era frear a expansão territorial da República de Veneza, mais tarde, aliando-se a Veneza, declarou guerra à França, para expulsá-los da Itália, alcançando-se a paz em 1516, com o retorno do status quo de 1508 na península itálica.
            Nesse período, Maximiliano I declarou ter intenção de conquistar a Itália para restaurar o antigo Sacro-Império-Romano-Germânico, fazendo-se coroar em Roma.
            Com sua morte, em 1519, Carlos I, da Espanha, foi designado seu sucessor, formando um estado que ocuparia quase metade da Europa.
            As obras mais conhecidas de Maquiavel são “O Príncipe” (1513) e “Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio” (1512-1517).
            Escreveu também o poema Asino d´Oro (1517), a peça “A Mandrágora” (1518), o romance “Novella di Belfagor” (1515), e outros, como “Dialogo Intorno Alla Nostra Língua” (1514), “Andria” (1517), “Discorso Sopra il Reformare ló Stato di Frirenze” (1520), “Sommario delle Cose della Citta di Luca” (1520), “Discorso della Cose Florentine dopo La Morte di Lorenzo” (1520), a comédia “Clizia” (1525), “Frammenti Storici” (1525), e poemas como “Sonetti”, “Canzioni”, “Ottave” e “Canti Carnascialeschi”.
            Escreveu ainda “Dell´arte della guerra” ou “A Arte da Guerra” (1519/1520) e a “Vita di Construccio Castracani da Lucca” (1520).
            O livro “A Arte da Guerra”, o único de seus trabalhos sobre política que foi publicado em seu tempo de vida, dava conselhos sobre como obter e manter a força militar, defendendo o preparo militar dos cidadãos para que eles e seu Estado mantenham a liberdade.
            A orientação de Maquiavel sobre o preparo dos cidadãos para defender sua cidade contra forças invasoras estrangeiras, de certa forma, serviu de exemplo e rota a ser seguido no século XX, pelo Marechal Tito, da República Iugoslava, quando ele estabeleceu sua linha de tolerância e de defesa contra o expansionismo soviético do período stalinista.
            Foi para Lourenço de Médice II (1492/1519), filho de Pedro de Médice, que Maquiavel dedicou seu livro “O Príncipe”.
            O método utilizado por ele, ao escrever a obra, rompeu com a tradição medieval ao fundamentar-se no empirismo e na análise dos fatos recorrendo à experiência histórica da Roma Antiga.
            Ele foi o primeiro a propor uma ética para a política diferente da ética religiosa, ou seja, colocando a finalidade da política como a mantença do Estado.
            Com a morte de Lourenço II, Júlio de Médice, que depois se tornaria papa com o nome de Clemente VII, assumiu o poder em Florença.
            Após a queda dos Médice em 1527, com a invasão e saque de Roma pelas tropas espanholas de Carlos I, a república instalou-se novamente na cidade de Florença, com o estabelecimento do Grande Conselho anteriormente instituído por Savonarola.
            “O Príncipe”, apesar de ser o livro mais conhecido de Maquiavel e tendo sido escrito completamente em 1513, embora já conhecido e criticado por muitos, só foi publicado oficialmente, após sua morte.
            Teve origem com a união de Juliano de Médice e do Papa Leão X, com o qual Maquiavel viu a possibilidade de um príncipe finalmente unificar a Itália e defendê-la contra os estrangeiros, apesar de dedicar a obra a Lourenço II, mais jovem, de forma a estimulá-lo a realizar esta empreitada.
            Os jesuítas o acusaram de ser contra a Igreja e convenceram o Papa Paulo IV a colocá-lo no “Index Libroruns Prohibitorum”, em 1529.
            Maquiavel era um verdadeiro republicano, mas ele acreditava que somente a força de um líder especial poderia criar um Estado Italiano forte.
            Sua preocupação central é com a constituição de um governo forte e capaz de reunificar a Itália, que estaria exposta à mercê das grandes potências europeias.
            Maquiavel defendia a Monarquia ou Principado como a forma de governo adequada ao momento de fundação de um novo Estado, que precisava da liderança de um governante firme e decidido para conduzir o povo.
            A reforma republicana, no entanto, é a mais adequada ao momento posterior da fundação e reestruturação do Estado, pois, para ele, o governo que é feito com a participação do povo, tinha chance de errar menos.
            Sem colocar-se como pensador sistemático, Maquiavel se valia do empirismo para escrever, através de um método indutivo, pensando seus escritos como conselhos práticos e não utópicos, e dizer, realista.
            Para ele, teoria e prática não se separavam.
            Como características marcantes do pensamento maquiaveliano, destacamos primeiramente, o realismo e o estabelecimento de uma ética laica.
            Um realismo extremo, do qual ele se valia para descrever não como o homem deve agir, ou como deve ser o governo, mas sim, como o homem age de fato e como, de fato, é o governo.
            Através de uma observação dos fatos históricos, ele concluiu que os homens sempre agiram pela via da corrupção e da violência, ressaltando-se que em quaisquer elementos que conferiram unidade à sua obra, ele manteve uma visão absolutamente pessimista / realista do homem.
            Para ele, a natureza humana seria essencialmente má e os seres humanos queriam, sempre, obter os máximos ganhos a partir do menor esforço, praticando o bem apenas quando forçados a isso, ou se lhes fosse vantajoso.
            Ao contrário do pensamento aristotélico que afirmava ser o homem um “animal social”, Maquiavel o colocava com instintos naturalmente antissociais, egoístas, de caráter ambicioso, invejoso, traiçoeiro, feroz e vingativo, praticando o bem apenas quando submetido à lei ou movido pela necessidade de sobrevivência.
            A ética em Maquiavel, contrapondo-se à ética cristã medieval, colocava que as ações dos governantes deveriam pautar-se na manutenção da pátria e do bem geral da comunidade, estabelecendo uma moral laica de base naturalista e provocando uma ruptura com o pensamento político medieval que vinculava a política à religião e à Igreja.
            Vista desta forma, a política, para ele, seria julgada em função de sua utilidade para a comunidade e seria moral toda a ação que visasse seu bem.
            Neste contexto, sua ética poderia legitimar o recurso do mal, da violência, da guerra, da tortura e morte, se utilizadas para resguardar a harmonia e o bem estar de uma parcela maior da sociedade, e dizer, para ele, os problemas entre moral e política só surgiriam quando determinados objetivos políticos exigissem a adoção de medidas condenáveis pela consciência moral, em nome de valores ou princípios que transcendessem a jurisdição temporal do Estado.
           
         A filosofia cristã, legada pela Idade Média ao Renascimento, concebia o homem como um ser temporal, de vocação social, dotado, porém, de uma destinação extraterrena, isto é, como um ser que vive naturalmente em sociedade, subordinado à lei positiva, mas que deve, antes de mais nada, obedecer à lei natural, colocada acima da própria autoridade do Estado, e que este não deve contrariar, pois ela emana da própria lei eterna.
                                 ESCOREL, Lauro. Introdução ao Pensamento Político de Maquiavel. Brasília: Ed.Universidade de Brasília, 1979.

            Maquiavel não reconhecia esta subordinação do Estado aos valores espirituais, transcendentes, da mesma forma que não reconhecia que o homem tivesse direitos naturais, anteriores à constituição da sociedade.
            Ao contrário, para ele, em estado de natureza o homem viveria nivelado aos animais, desconhecendo quaisquer noções de bem ou de mal, de justiça ou de injustiça.
            No seu pensamento, a “ação moral” seria toda ação manifestamente útil às comunidades e ação imoral, aquela que só tinha em vista a satisfação de interesses privados e egoístas.
            A virtú, ou ação virtuosa, não consistia, de modo algum, em agir segundo uma ideia abstrata de bem,desinteressando-se de suas repercussões práticas.
            A virtú, seria a capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos que levaria à permanência no poder, algo como uma barragem que deteria os desígnios do destino, consistindo em saber aproveitar-se das oportunidades oferecidas pela “fortuna”, avaliando, de uma maneira consciente a situação e as possibilidades de ação, para em seguida escolher os meios mais adequados para transformar em realidade a decisão tomada.
            Este novo conceito de virtú, nada tinha em comum com o conceito medieval de submissão do homem à vontade de Deus, renúncia ao mundo terreno e glorificação do mundo contemplativo.
            Segundo Maquiavel, o homem virtuoso seria aquele que enfrentando os perigos, suportasse melhor as adversidades, lançando, por direito, mão de todas as armas possíveis para sobrepujar a “fortuna” (destino), observando suas capacidades e agindo com obstinação.
            Assim, o conceito maquiaveliano de virtú prescinde, de modo absoluto, qualquer critério de avaliação do comportamento humano, onde o importante, para ele, era observar se determinada ação foi adequada à situação dada e se alcançou a finalidade desejada, ou seja, encarando a política como uma técnica, o julgamento das ações de um governante só poderia se dar a posteriori, em função da sua eficácia prática ou resultado obtido.
            Em síntese, apesar de pessimista no que diz respeito ao ser humano, mesmo reconhecendo a existência de indivíduos dotados de uma virtú superior, capazes de sobrepor o bem comum aos seus próprios, ele acreditava que os homens não tinham outro interesse senão a satisfação de seus interesses particulares, ficando por isso, necessitados da lei.
            Ele concebia a política como uma atividade complementar situada fora dos limites da moral, com leis e regras próprias, desassociada das amarras teológicas com que a Idade Média atara o poder temporal, recusando-se a reconhecer qualquer valor superior à autoridade do Estado.
            Maquiavel, em sua obra “Discurso Sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, ou simplesmente “Discorsi”, escrita entre 1513 e 1521, oferece uma lúcida avaliação acerca da necessidade de se distinguir ação moral da ação política, onde as ações políticas dizem respeito às leis, à liberdade, às instituições políticas e seu funcionamento numa república.
            No seu tratado sobre o principado, ele considera que não há, para o homem político, a possibilidade de ação fora da vida terrena.
            A humanização das ações humanas e seus significados se dá, em seu raciocínio, por meio de uma naturalização do político.
            Para ele, o Estado que ora é sujeito, ora é objeto da ação dos homens, pode ser reduzido a dois aspectos: a manutenção da ordem pública nas relações internas e a defesa da integridade da pátria nas relações externas.
            Os “Dircorsi” são divididos em três livros, onde no primeiro Maquiavel trata do funcionamento interno das repúblicas, no segundo, aborda basicamente questões militares (para ele sempre muito importantes) e, no terceiro, ele discute a ascensão e queda das repúblicas, isto é, da dinâmica dos Estados.
            A primeira grande diferença entre sua obra “O Príncipe” e os “Discorsi” é a de perspectiva: enquanto no primeiro livro as questões políticas são tratadas da ótica do governante (do príncipe), na segunda, Maquiavel procura avaliar o quadro social na sua totalidade e oferecer uma visão global do sistema político.
            No “Discorsi” não existe a figura de um personagem central e o destinatário da mensagem não é mais “O Príncipe”, e sim, um leitor muito mais genérico, embora a pretensão de produzir um livro que tenha “sentido prático” continue presente.
            Isto se torna mais perceptível na sua afirmação de que parte dos fracassos da política de seus contemporâneos deve-se ao fato de que a história antiga é por eles mais admirada do que imitada.
            Logo no primeiro capítulo ele explica que a natureza humana tem uma constância comparável à do céu, do Sol e dos elementos nos seus movimentos.
            Por isso, continua ele, vale a pena estudar as ações dos antigos e imitá-los no que for cabível.
            Ele escolhe para sua obra a Roma Antiga, cuja estabilidade republicana, desfrutada em seus 300 anos de acidentes históricos, foi capaz de expandir-se e de suportar conflitos internos sem se destruir, constituindo-se assim, em um exemplo rico de ensinamentos.
            De maneira geral, para Maquiavel, o nascimento de uma cidade se dá pela ação dos homens, não de indivíduos, mas sim de grupos que vivem dispersos e, de alguma forma, decidem se unir numa mesma área, seja ela em função de sua segurança ou de qualquer outro motivo.
            Em sua visão, como no momento da constituição do Estado os indivíduos já estão reunidos em grupo, o problema da segurança, para ele, não é matéria individual, mas sim um assunto de grupos.
            Para ele, a primeira forma a se constituir naturalmente, a partir de uma agregação inicial que permita reconhecer a liderança, é a monarquia.
            Tal liderança pode tornar-se, num segundo momento, fonte de noções coletivas de bem e de justiça, onde o arbítrio e a força cedem à razão.
            Neste ponto, vale ressaltar que, para ele, a forma original do poder se constitui, não pela força, mas pela diferenciação da força, sendo anterior à moral.
            Também vale registrar-se que, para ele, a moralidade se constitui inicialmente pela percepção dos sentimentos que certas formas de agir despertam nos expectadores.
            Com isto, ele introduz um fator adicional ao lado da força, que podemos denominar de “princípio de legitimidade”, que vai dar conta das variadas formas de governo.
            Maquiavel chama também a atenção para o fato de que a liberdade e a força da república romana teria nascido da desunião entre a plebe e o senado, ficando as leis em segundo plano, já que o povo não age contra os grandes senão pelo desejo de não ser oprimido.
            A constatação que faz, portanto, é a de que não basta a existência da lei para que possa haver liberdade, é preciso que esta lei crie espaço e caminhos para canalizar os conflitos.
            Em seu raciocínio, as leis oferecem mecanismos de acomodação dos conflitos e, neste sentido, acabam por institucionalizá-los da sociedade.
            O ponto importante aqui é que as leis constituem, segundo ele, a legitimação do emprego da força, sempre um recurso importante, mas que devem ser limitados por elas.
            Para Maquiavel, é necessário que as leis da república ofereçam meios legítimos ao povo de manipular o ódio que um cidadão possa lhe inferir, assegurando a todos o direito de acusar, diante de um magistrado, aquele cidadão que tenha atentado contra a liberdade.
            Segundo ele, a institucionalização de tal poder faz com que os cidadãos, temendo ser acusados, não invistam contra a segurança do Estado.
            No “Discorsi”, Maquiavel destina ainda capítulos ao tratamento da religião e suas funções políticas, abordando os perigos que ela pode acarretar para o Estado.
            A religião, segundo ele, constitui um conjunto de crenças que o legislador sábio cria ou adota ou incorpora ao seu governo, já que o povo, convencido de que o poder dos deuses é maior do que o dos humanos faz com que respeitem seus juramentos mais do que às leis.
            A ideia geral é que é parte da ação política prudente manter e valorizar a crença religiosa, pois ela fortalece a fidelidade ao Estado e a união entre os cidadãos.
            No “Discorsi”, a virtú, em seu sentido pleno, deve ser entendida como algo mais do que a aptidão para conquistar e manter o poder, devendo ser percebida muito mais como a qualidade ou posse dos atributos necessários para a construção e engrandecimento do Estado.
            Outra manifestação da virtú no comportamento coletivo que aparece em seu “Discorsi” é aquela que implica na realização de sacrifícios necessários para a defesa da pátria, da liberdade e das instituições republicanas.
            Para Maquiavel, a virtú se manifesta no povo como a fidelidade às instituições livres e republicanas.
            Finalizando os comentários sobre esta obra, para Maquiavel, a unidade política estatal passa a ser vista, em seu “Discorsi”, como uma realidade que se manifesta por meio de um conjunto de instituições que não apenas regulam as relações entre o poder e os particulares, ou de particulares entre si, mas de instituições que passam, também, a ser vistas como limitadoras do poder estatal e como noções construtivistas de um espaço social.
            Em sua obra “O Príncipe”, ele coloca, de maneira humilde, mas ousada, considerações acera de sua experiência e observações sobre governantes, sugerindo ao príncipe, atentar para suas considerações sobre vários temas ligados ao governo.
            Distribuído ao longo de 26 capítulos, ele aborda desde as várias espécies de principados, às maneiras de se conservarem as cidades, da forma de medir sua força, das tropas necessárias ao príncipe, da sua relação com o povo, da relação com a Igreja, dos cuidados com seus ministros e com os aduladores do governo.
            Discorre sobre direitos hereditários de poder, colocando a importância de conservar as atitudes aceitas e louvadas de seus antecessores pelo povo, alertando ao destinatário sobre os perigos de manter as atitudes reprovadas ou impostas, dada a possibilidade da rebelião.
            Coloca a importância, que considera vital para a mantença da conquista de um novo principado, sem qualquer subterfúgio de caráter moral, a total eliminação da linha sucessória do príncipe que foi derrotado.

                     Basta, para que se assegura da posse desses Estados fazer desaparecer a linha do príncipe que o dominava, pois mantendo-se nas outras coisas a condição antiga, e não havendo disparidade de costumes, os homens vivem calmamente. [...] O conquistador, para mantê-los, deve ter 2 regras: primeiro, fazer extinguir o sangue do antigo príncipe; segundo, não alterar as leis nem os impostos.
                                     O Príncipe – Cap. III, Dos Principados Mistos

            Se trouxermos esta colocação explicita de ação sugerida, para um período não tão distante dos dias atuais, mais precisamente para um período de 400 anos após Maquiavel ter escrito estas palavras, lembrar-nos-emos da Revolução Russa, de 1917, onde o “príncipe bolchevique” Lenin, ordenou a execução do Czar Nicolau II, da casa Romanov, junto com toda a sua família, para assegurar o novo modelo de governo que estavam por implementar.
            Em outro momento, Maquiavel aconselha “o príncipe” sobre os procedimentos e cuidados que ele precisa ter quando anexa outros Estados aos seus domínios.

“Quando se conquista Estados habituados a reger-se por leis próprias e em liberdade, há três modos de manter-se a sua posse: primeiro – arruiná-los; segundo – ir habitá-los; terceiro – deixá-los viver com suas leis, arrecadando um tributo e criando um governo de poucos, que se conservem amigos.”
               O Príncipe -Cap.V – Da Maneira de Conservar as Cidades

            Maquiavel, provavelmente, extraiu este conceito observando a relação que a Roma Antiga mantinha com suas colônias, por exemplo, a da Judéia, quando permitia que um pequeno número de líderes religiosos exercessem o controle sobre o povo, ainda que subordinados ao poder de seus embaixadores, para que estes, recolhendo as oferendas oferecidas nos templos, as convertessem em tributos à Cesar.
            Mesmo assim, valendo-se possivelmente do mesmo exemplo, onde a revolta e a conspiração nunca abandonaram o pensamento dos oprimidos, ele insistiu:

         É que, na verdade, não há garantia de posse mais segura do que a ruína. Quem se torna senhor de uma cidade tradicionalmente livre e não a destrói, será destruído por ela.
         Assim, para conservar uma república conquistada o caminho mais seguro é destruí-la ou habitá-la pessoalmente.
              O Príncipe – Cap. V – Da Maneira de Conservar as Cidades

            Aconselhava também que, para a execução das medidas repressoras e cruéis que a situação solicitasse para assegurar a posse de um novo território, devia-se indicar um subordinado fiel, de caráter medíocre, que não hesitasse em fazê-las de uma só vez, ainda que instaurando o terror.
            Uma vez assegurada a posse do território, como maneira de garantira gratidão dos conquistados e, a partir dela, sua fidelidade, este “verdugo” nomeado, seria oferecido em holocausto, pelos exageros cometidos.
            Cita como exemplo, a ação tomada por Cesar Bórgia na tomada da Romanha, quando indicou Ramiro de Orco para o comando, “homem cruel e expedito” (Cap.VII – Principados Novos que se Conquistam por Armas), que, após cumprir a sua tarefa, foi sacrificado para que Cesar Bórgia fosse adorado e visto como benfeitor pelo povo.
            Nos tempos modernos, ressalvadas as devidas proporções, podemos analisar Eichmann, o grande exterminador de judeus na Segunda Grande Guerra que, conforme depoimento de Hannah Arendt (1906/1975), era um simples e medíocre burocrata que foi colocado naquela posição de comando, para desempenhar uma tarefa, o que fez, sem ressalvas éticas ou morais que o desviassem do caminho.
            Maquiavel fala também, sobre o Principado Civil, onde o governante é colocado nesta função por meio dos “apetites” do povo ou dos poderosos.

“        Percebendo os grandes que não podem resistir ao povo começam a dar repercussão a um de seus elementos e o fazem príncipe, para poder, sob sua sombra, satisfazer seus apetites.
         O povo também, vendo que não pode resistir aos grandes, dá reputação a um cidadão e o elege príncipe para estar defendido com a sua autoridade.
         O que ascende ao principado com a ajuda dos poderosos se mantém com mais dificuldade do que aquele que é eleito pelo próprio povo. “
                              O Príncipe – Cap. IX – Do Principado Civil

            Embora escrito a 500 anos atrás, este pequeno trecho demonstra o quão atual seus ensinamentos, quase proféticos, continuam a ser.
            A recente democracia brasileira, nestes últimos 25 anos, experimentou as duas situações descritas por Maquiavel, primeiro elegendo Collor e depois, com Lulla, ambos políticos assistencialistas (tipo Bolsa Família) e desconectados de um projeto nacional de longo prazo, a não ser o de mantença do poder, pelo poder.

“ E como os homens, quando recebem benefícios de quem só esperavam mal, se obrigam mais para com o benfeitor, torna-se o povo mais seu amigo do que se o príncipe houvesse sido levado ao poder por favor seu.”
                               O Príncipe – Cap. IX – Do Principado Civil

            Percebe-se também, de maneira persistente na quase totalidade de suas argumentações, uma excessiva preocupação de Maquiavel com as forças militares envolvidas, tanto na república quando no principado.
            Isto é tão marcante em sua obra, que a frase: - O direito reside na força! , é colocada no corpo do texto apócrifo, mas, atribuído a ele por muitos, “Os Protocolos dos Sábios do Sião”.

“        Dissemos que é necessário a um príncipe estabelecer sólidos fundamentos [...] e as principais base que os Estados têm, são boas leis e boas normas. E como não podem existir boas leis onde não há armas boas, e onde há boas armas convém que existam boas leis, as forças com que um príncipe mantém o seu Estado são próprias ou mercenárias. As mercenárias e auxiliares são inúteis. O Estado é espoliado por elas na paz, e, na guerra, pelos inimigos”.
    O Príncipe – Cap. XII – Das Milícias e dos Soldados Mercenários

            Maquiavel refere-se neste trecho de sua obra ao período de conflito entre os cartagineses e os romanos, onde as tropas mercenárias dos primeiros, de nada lhes serviram, pelo contrário, foram subornadas e voltaram-se contra eles.
            Continua ainda

“        Quero contudo, demonstrar a má qualidade destas tropas. Os capitães mercenários ou são grandes militares ou não são nada; se o forem, não te poderás fiar neles, porque aspirarão sempre a própria glória. Se não forem grandes capitães, irão te arruinar por isso mesmo.
         O Príncipe em pessoa é quem deve constituir-se capitão, a República deve mandar para este posto, um de seus cidadãos.
         E, se se revelar um homem de valor no seu posto, deve a República assegurar-se, mediante leis, contra o capitão, para que ele não exorbite das suas funções.
      O Príncipe – Cap. XII – Das Milícias e dos Soldados Mercenários

            Provavelmente, este alerta de Maquiavel, foi pensado e extraído do fato histórico em que Júlio Cesar, cruzando o Rubicão, entrou com seu exército em Roma, tomou o poder e tornou-se imperador.
            Antes dele, em outro exemplo, Felipe da Macedônia, feito pelos tebanos o capitão de sua gente, depois da vitória contra seus inimigos, tirou-lhes a liberdade.
            De qualquer forma, encerrando os comentários sobre a preocupação com as tropas, tão presente na obra de Maquiavel, aonde, em dado momento, chega a deixar registrado que “ um príncipe não deve ter outro pensamento, nem ter qualquer outra coisa como prática, a não ser a guerra, o seu regulamento e a sua disciplina...”  (O Príncipe - Cap. XIV- Dos Deveres do Príncipe para com as Tropas) associamos este pensamento ao período da ditadura Vargas no Brasil, que chamamos de Estado Novo.
            Nesta época, embora o Brasil tenha tido uma pequena participação no evento da Segunda Grande Guerra, o “estado de guerra”  ao qual a população foi submetida, possibilitou a Getúlio Vargas as condições necessárias de governabilidade durante a ditadura que instalou.
            Acabada a guerra, acabaram-se as condições favoráveis e findou-se seu governo.
            Maquiavel dedica os últimos capítulos de “O Príncipe” ao trato das posturas que o mandatário do poder deve apresentar, em questões de liberalidade (Cap.XVI) onde deixa claro que, o liberal, para poder ser sempre liberal, acabará gastando sua fortuna e precisará aumentar os impostos, o que será sua ruína, já que será odiado por muitos e amado por poucos (aqueles que ganham suas benécies), ao passo que, aquele que for avaro, pouco gastará e por isso, não aumentará impostos, o que lhe concederá elogios e o título de liberal por muitos, de quem nada tira, e crítica de poucos a quem nada dá.
        
“ Aceitando a pecha de avarento, com o tempo, poderá demonstrar que é cada vez mais liberal, pois o povo verá que a parcimônia do príncipe faz com que sua receita lhe baste [...] Assim pois, é mais prudente ter a fama de miserável do que ser obrigado a incorrer na rapace, e tornar-se odioso.”
                 O Príncipe – Cap. XVI – Da Liberalidade e da Parcimônia

            Nos dias de hoje, é praticamente impossível desassociar este pensamento de Maquiavel, por exemplo, da atitude, de certa forma inusitada, do atual presidente José Mujica, no Uruguai, criticado por poucos pela modéstia e amado por muitos pelo exemplo que dá, no trato do dinheiro público.
            Outrossim, Maquiavel alerta seu príncipe, de que, mesmo amado, é importante, também, que seja tido por justo, ou mesmo cruel e impiedoso para com os infratores e dissidentes, do que fraco e clemente.

Não deve, portanto, importar ao príncipe a qualificação de cruel para manter seus súditos unidos e com fé, porque, com raras exceções, é ele mais piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens. É que estas consequências prejudicam todo um povo, e as execuções que provém do príncipe ofendem apenas um. É muito mais seguro ser temido que amado. Os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer.
                           O Príncipe – Cap. XVII – Da Crueldade e Piedade

            Como pudemos demonstrar, apesar de passados mais de cinco séculos, a obra e o pensamento de Maquiavel, que inaugurou o pensamento e a ciência política, continuam a ser referência para todos aqueles que se dedicam ao tema.
            Para governos de esquerda ou de direita, tirânicos ou liberais, monarquias ou repúblicas, seus exemplos continuam a ser válidos, basicamente pelo fato de tratarem o homem e as coisas humanas como são realmente, e não como deveriam ser.
            Assim como á vida humana é contingente, dependente da vontade, onde, segundo Platão, o desejo é a falta (o que caracteriza o homem é a busca da satisfação, buscar o que lhe falta), a vida em comunidade também o é, precisando o homem assumir relações pré-estabelecidas e aceitas para viver em comunidade, o que, por si, implica em conflito.
            A política é, portanto, o que há de contingente na nossa convivência, transformando-se na gestão de desejos contraditórios e em conflito, na gestão da alegria e da tristeza.
        
         Se o homem é por natureza desejante, a polis é por natureza uma guerra de todos contra todos.  (Hobbes, Leviatã, 1651)

            Uma gestão que, aparentemente conectada, em verdade ignora a opinião (substância) pública (adjetivo), coisa naturalmente inexistente, determinada apenas pelos meios midiáticos que a tornam pública, e que é focada, sempre, no interesse de quem governa, de seus aliados e financiadores.

Professor Orosco    

O RENASCIMENTO


            Renascimento ou Renascença foram os termos usados para identificar o período da história que compreende desde os fins do século XV a meados do século XVI, caracterizado por profundas transformações em muitas áreas da vida humana, que encerrou a Idade Média e deu início à Idade Moderna.
            Chamou-se Renascimento em virtude da redescoberta e da revalorização das referências culturais da antiguidade clássica.
            O florescimento cultural e científico renascentista abriu para o homem o caminho para o desenvolvimento de uma nova atitude diante da vida, enxergando as belezas naturais do mundo como coisas a serem desfrutadas.
            O desenvolvimento da filosofia renascentista foi influenciado por uma série de acontecimentos ocorridos nos séculos XIV e XV, que trouxeram muita instabilidade política para a Europa, como a transferência da sede pontifícia para Avignon, por Clemente V, que provocou o “Cisma da Igreja Católica” (1378/1418), chegando-se a ter, certa vez neste período, 3 pontífices simultâneos (Bento XIII, Gregório XII e João XXIII);do início de um longo período de hostilidades entre a Inglaterra e a França, conhecida por “A Guerra dos Cem Anos”; além da retomada de Bizâncio (Constantinopla) pelos turcos otomanos, em 1453.
            Nesta situação de desordem, o regresso às origens proposto pelo Renascimento, assume um significado histórico e humano, segundo o qual o princípio a que se deve regressar não é Deus, e sim, a origem terrena do homem e do mundo humano.
            Esta nova corrente do pensamento filosófico humano desenvolve-se inicialmente na região da Toscana, na cidade de Florença, espalhando-se, a partir daí, para o resto da Europa, o que, para muitos estudiosos a coloca como restrita à Itália, ou melhor, como um movimento de italianização da Europa.
            Neste período, onde o progresso tecnológico começa a ganhar proporções até então impensadas, onde as matemáticas se consolidam como instrumentos do saber humano, destacaram-se grandes nomes, como Nicolau de Cusa (1401/1464), que defendia a ideia de que o homem não deveria aventurar-se ao conhecimento de Deus, sem antes ter em conta os seus próprios limites, mas que, todavia, a ideia de que nesses mesmos limites, ele pode obter um conhecimento de Deus, garantida pela íntima relação entre ambos.
            Leonardo da Vinci (1452/1519), que considerava a arte e a ciência como um único escopo: o conhecimento da natureza.
            Para ele, a função da pintura era representar para os sentidos as obras naturais, e ele buscava nela, a ordem mensurável da natureza.
            Michelangelo di Simoni (1475/1564), pintor e escultor que, junto de Rafael di Sanzio (1483/1520) são considerados entre os grandes mestres da pintura e da arquitetura da Escola de Florença.
            Nicolau Copérnico (1473/1543), cientista e matemático que conseguiu demonstrar em sua obra de astronomia “De Revolutionibus Orbium Celestium Libri”, publicada pouco após sua morte, o movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo; o movimento de translação da Terra ao redor do Sol e o anual do eixo terrestre relativamente ao plano da elíptica, originando a teoria heliocêntrica.
            Johannes Kepler (1571/1630) que descreveu o movimento dos cinco planetas (do grego Planetai, que quer dizer errante) do sistema solar e o movimento elíptico destes em relação ao Sol, assim como a relação das áreas descritas pelo raio vetor (entre o planeta e o Sol) que mantém a proporção em função do tempo gasto para descrevê-las.
            Galileu Galilei (1564/1642) que, como cientista, astrônomo, valendo-se da invenção do telescópio (Hans Lippershey), conseguiu comprovar experimentalmente as alegações defendidas por Copérnico.
            Galileu considerava que o livro da natureza é escrito em língua matemática e os seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas.

            É atribuída a ele a frase: “A Matemática é o Alfabeto com o qual Deus Escreveu o Universo”.

Professor Orosco

O HUMANISMO

            O Humanismo foi uma corrente filosófica que surgiu no século XIV e durou até o século XV, propondo a ideia do “homem como centro do pensamento filosófico”, o antropocentrismo, que se contrapunha ao pensamento teocêntrico medieval, que tinha “Deus no centro do pensamento filosófico”, vigente até então.
            Na visão humanista o homem passa a ser entendido como apenas mais um elemento da natureza, com a qual se relaciona exclusivamente pela necessidade.
            Para os humanistas a espécie humana, junto com os animais e as plantas, fazem parte de um todo.
            E este todo é Deus.

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do porque quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.”
                                                                        Blaise Pascal, Aforismos

            Mais empiristas e menos espiritualistas, os humanistas apresentavam uma preocupação com a ética e afirmavam a dignidade do ser humano, recusando explicações transcendentais e preferindo o racionalismo.
            Esta corrente de pensamento filosófico acabou ganhando importância, força e propagou-se, auxiliada em grande parte pelo antagonismo existente à época entre a realeza e o papado, entre o poder temporal e o poder espiritual, amparada por uma “classe média emergente”, que detinha capital, poder militar e que estava disposta a consolidar sua posição, financiando as artes, a música e a literatura, a propagação do saber,livre do poder da Igreja.
            Como expoentes deste movimento citamos, em ordem cronológica e não em ordem de importância, alguns personagens que contribuíram para marcar este período e esta corrente de pensamento filosófico.
            O primeiro, Dante Alighieri (1265/1321) que afirmava que a única garantia para a paz e para a justiça da cristandade estava no estabelecimento de uma unidade política sob um único dirigente, deparado do poder da Igreja, e dizer, defendendo um movimento laico do Estado.
            O segundo, Guilherme de Ockhan (1285/1349) que sustentava que, como Deus é todo poderoso e porque sua vontade não pode ter limites, tudo no mundo é contingente, tudo poderia ser diferente do que é, se ele quisesse, e que, por isso, a teologia não deveria interferir no estudo das coisas do mundo empírico.
            O terceiro, Francesco Petrarca (1304/1374), tido como o pai do Humanismo, considerado o inventor do Soneto, um tipo de poesia composta de quatorze versos, que defendia a colocação dos seres humanos como principais elementos numa escala de importância.
            Durante suas viagens, colecionou manuscritos latinos e, assim, tornou-se um dos primeiros a redescobrir o conhecimento da Roma Antiga e da Grécia Antiga, fazendo renascer na Europa o desejo por conhecer o pensamento de Sócrates, de Platão e Aristóteles.
            O quarto, Pico Della Mirandola (1463/1494) que sustentava que o fato de o homem ser “inacabado” e, portanto, poder evoluir, lhe conferia uma dignidade especial.
            Ele afirmava que Deus, tendo criado todas as criaturas, foi tomado pelo desejo de gerar outra, um ser consciente, que pudesse apreciar a criação.
            Então, Deus criou o homem.
            O quinto, Marcilio Ficino, considerado o maior representante do Humanismo florentino, montou sob a proteção de Cosmo de Médice (1414/1469), uma academia inspirada na antiga Academia de Platão, que ficou conhecida como neoplatônica florentina.
            Foi Marcilio Ficino que utilizou, pela primeira vez, a expressão “Amor Platônico”, como sinônimo de amor socrático.
            O sexto exemplo destes representantes foi Erasmo de Roterdam (1466/1536) que, como acadêmico tentou libertar os métodos da Escolástica de sua rigidez e do formalismo das tradições medievais, satirizando em seus escritos as tolices clericais e seus abusos, sem, contudo, declarar-se contrário à Igreja ou ao clero.
            Por último, um sétimo representante, Miguel de Montaigne (1533/1592), considerado como aquele que trouxe equilíbrio ao Humanismo, quando o homem já não se exalta, mas, antes, se aceita como realmente é.
            Para Montaigne, como o homem sabe que sua situação é perdível, reconhecendo a finitude da vida, a ideia da morte suscita nele o desejo de viver, mas de viver de uma forma profunda e plena.
            O Humanismo foi precursor e deu origem ao Renascimento.

Professor Orosco

sábado, 12 de abril de 2014

TO BE OR NOT TO BE, THAT IS THE QUESTION

            Ser ou não ser, eis a questão.

            Seguramente esta é uma das frases mais conhecidas e repetidas no mundo, denotando um certo respeito ao conhecimento, aos clássicos e ao conceito de filosofia, estabelecido pelo senso comum.
            Escrita por William Shakespeare, entre 1599 e 1601, esta frase faz parte da tragédia grega Hamlet, que conta uma historia, passada na Dinamarca, de como o príncipe Hamlet tenta vingar a morte do pai, Hamlet, o rei, assassinado por Cláudio, seu irmão, que o envenenou e que, em seguida, tomou o trono, casando-se com a rainha.

Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna (destino), enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim?
Morrer... dormir: nada mais
[...] Morrer, dormir
[...] Dormir, talvez sonhar
                                       Shakespeare. Tragédia Hamlet, Ato III Cena I

            Na busca determinada de vingança, Hamlet, o príncipe, acaba engajado em dúvidas filosóficas e morais, aparentando estar louco.
            Ser ou não ser, a expressão repetida por Shakespeare, sem dúvida alguma consta entre as maiores questões levantadas pela espécie humana, desde o início dos tempos.
            Para tentar trazer alguma luz ao tema, ajudando a elucidar esta dúvida, vamos, primeiramente, nos perguntar "o que é ser ?".
            Partindo de uma análise da linguagem, podemos dizer que o infinitivo português "ser" pretende traduzir o particípio substantivo grego "tò ov" ou o particípio latino "ens", "ente", ou, de modo mais preciso ainda, "alguma coisa que é".
            O ser é, portanto, alguma coisa que tem por determinação própria ou por atualidade o existir.
            Para compreender melhor este conceito, comecemos por estudar Parmênides, filósofo grego, natural de Eléia, uma cidade cujas ruínas encontram-se na região de Salerno, Itália, que viveu aproximadamente entre 530 e 460 a.C., com quem teria nascido aquilo que chamamos ontologia, o conhecimento do ser.
            Ele teria, em sua obra, formulado pela primeira vez os dois princípios lógicos fundamentais do pensamento:
            - o princípio de identidade: o ser é o ser e
            - o princípio da não contradição: se o ser é, o seu contrário, o não ser, não é.
            Em seu poema "Sobre a Natureza", que introduziu o hábito de expor argumentos, conclusões calcadas em premissas, ele descreve de forma metafórica uma experiência de renúncia e de revelação, apresentando como conteúdo principal, aquilo que foi revelado, a via da verdade.
            Neste poema ele explora dois possíveis caminhos para que se possa encontrar a verdade onde, no primeiro, o homem deixando-se levar pela razão, é levado à evidência de que "o que é, é, e não podia deixar de ser".
            No segundo caminho, a via da opinião, pelo fato de se atentarem para os fatos empíricos (baseados apenas na experiência), pelas informações obtidas através dos sentidos, o homem não chegaria à verdade e à certeza, permanecendo preso no nível instável das opiniões.
            Neste poema, ele associa o caminho da verdade, da razão, à luz do dia, onde a luz desnuda o mistério e, em contraponto, associa o caminho da opinião à noite, cuja escuridão esconde a realidade e nos induz a imaginar e a mistificar.
            Na sequência, para tentar compreender melhor o ser, recorreremos a Aristóteles e ao seu quadro lógico das oposições, um diagrama em que cada uma das quatro proposições do sistema está relacionada às outras três.


            Observando este quadro, compreendemos melhor o sentido de extensão das coisas, partindo dos universais (todos/nenhum) para os particulares (alguns), onde, de maneira bem simples, podemos observar que os particulares estão sempre subordinados, contidos, nos universais, no todo.
            Com este conhecimento, fica muito simplificado o processo de compreensão dos conceitos de gênero e de espécie, esta última, contida no gênero, que tem sempre um caráter de maior extensão.
            Explicando melhor:
            Poderíamos dizer que no gênero dos vivêntes, encontra-se as espécies animal e vegetal.
            Também poderíamos dizer que no gênero animal, encontram-se as espécies racional e irracional e, dentre os racionais, o homem.
            Homem, aqui, não é espécie, pois não existe outro animal racional.
            A humanidade teria uma extensão maior do que homem.
          Poderíamos dizer espécie humana, da qual um homem qualquer, pode ser considerado, apenas, um acidente.
            Uma cor, por exemplo, é sempre um acidente, já que é uma particularidade da coisa em si, daquilo que é, do ser.
            Os gregos tinham uma palavra, ειδος, "Eidos", para designar "aquilo que faz uma coisa ser o que ela é", que nós, de maneira equivocada ou simplista, costumamos chamar de essência.
            Explicando melhor, quando dizemos mesa, não importando o idioma; não importando sua cor, formato ou tamanho, todos compreendemos o significado.
            Todos temos uma ideia do "eidos" da mesa, que só se concebe mediante a existência da própria mesa.
            Este eidos é a causa da coisa.
            Nós, pelos sentidos, quando vemos uma coisa, vemos apenas uma parte da causa da coisa, aquilo que é percebido pelos sentidos.
            Não vemos, por exemplo, o artífice que construiu a mesa ou a árvore da qual se extraiu a madeira de sua construção, e ambos, também, são causas da coisa.
            Na metafísica (além da física) e, mais particularmente em Santo Tomas de Aquino (1225/1274), para simplificar este processo de entendimento do ser, adotou-se uma espécie de escala, que nos auxilia na compreensão do ser.
            1 - O de menor extensão, aquilo que vemos, uma essência já manifesta em sua definição; que já foi definida, que chamamos "quididade".
            Por exemplo, a humanidade do homem; a animalidade dos animais.
            2 - Com extensão um pouco maior, a "essentia", uma substância conhecida, que pode ser definida, o que determina a coisa ser o que ela é, seu eidos, por exemplo, vivente.
            3 - Uma extensão maior ainda, a "entia", um modo genérico de falar substância, uma unidade ontológica à qual se pode dar uma definição, mas que ainda não foi definida.
            A substância, ideia ou forma, já está além dos sentidos, encontrando-se no intelecto, na razão, na reflexão.
            Por exemplo, o conceito das formas geométricas.
            4 - O "esse", às vezes traduzido por "ser", mas que se refere ao "ato de ser", pela sua atualidade, da possibilidade, do ser enquanto ser.
            A mesa é um esse; a porta é um esse; são o que são, no ato de ser.
            5 - O "ens", "ente", que diz respeito ao "que é".
            A inteligência do homem só existe fora dele mesmo; ela precisa do mundo sensível para que o intelecto funcione.
            6 - E finalmente, o "ens per se", "o ente por si", o "Ser", que é causa de si mesmo, aquilo que chamamos Deus.
            Como conclusão, podemos, então, dizer, que o ser está na coisa e que também está no intelecto, e que está, também,  além do intelecto.
            Inicialmente, no pensamento do artífice, depois, manifesto em sua obra, permanecendo em ambos enquanto existirem.

 Professor Orosco

sexta-feira, 21 de março de 2014

CHAMAMENTO AOS HOMENS LIVRES



Compartilhando a imagem de Ivy France, meu amigo e irmão aqui do Facebook, gostaria de comentar que, diante de sua colocação de que
"o povo brasileiro precisa da mobilização dos homens livres e de bons costumes", gostaria de destacar que, recentemente, tive a oportunidade de colocar a um seleto grupo de irmãos, uma breve reflexão sobre o momento que vivemos. 
Argumentei que, diante da falta de respostas em que nos encontramos, onde a ciência não responde às nossas dúvidas; onde a religião não consegue mais justificar as coisas que vemos e percebemos; onde a política e os políticos, administrando e legislando para um tipo de homem "pensado", "idealizado", que nada tem de real, igualmente não dá vazão às nossas demandas, é normal e até compreensível que as pessoas se sintam perdidas, desorientadas, sem referência.
Este fenômeno é global e está acontecendo simultaneamente em todas as partes do planeta.
Neste sentido, como seres animais, impedidos de "raciocinar" e de vislumbrar um futuro imediato, também é normal que retornemos às nossas origens, em busca da referência perdida e que, como consequência deste ato, nos comportemos de forma tão bestial.
Como alerta o professor e filósofo Laez Barbosa Fonseca, nesta condição, observa-se estar em curso, uma mudança de paradigma no mundo, similar àquela em que os gregos aboliram o mito e passaram a filosofar; similar àquela em que o advento do cristianismo introduziu o monoteísmo global e uma religião que atendeu Roma em seu domínio mundial; similar àquela que, no despertar da ciência renascentista sepultou o geocentrismo e com ele o teocentrismo.
Concordando com Ivy, gostaria de acrescentar que, é necessário a real mobilização de todos os homens "livres e de bons costumes", não só no Brasil, mas no mundo, para que se possa conduzir este processo de mudança com o menor sofrimento possível para a espécie humana.
Igualmente é necessário que esta mobilização se dê de forma libertária, inclusive dos nossos próprios dogmas, para que não sejamos outros a propor formas alternativas de dominação.
É do nosso exemplo cotidiano, que podemos fazer a diferença.
Recusar-se a corromper ou ser corrompido; recusar-se a escolher o caminho que contemple apenas o seu interesse, desconsiderando as implicações sobre os demais; respeitar todos os seres viventes, inclusive aqueles dos quais nos alimentamos, como parceiros nesta existência, etc.
Enfim, levar e propagar a ideia de uma vida justa que busca a perfeição, honrando um juramento proferido junto do livro da lei.
Levar a serio a lapidação da pedra bruta e a construção do templo interior.
Como pedreiros, ajudar a humanidade a edificar templos à virtude e cavar masmorras ao vício.
Só isso, nada mais.

Professor Orosco

quinta-feira, 13 de março de 2014

MEU BRASIL ESTÁ DOENTE

Meu Brasil está doente, ele sofre da Síndrome de Estocolmo

Hoje é 13 de Março, 13 escreve-se como contrário de 31 e, portanto, vamos partir do pressuposto que hoje também é o melhor dia para falar contrariamente ao 31 de Março, data que alguns desejam comemorar.

Ao ver postado nas redes sociais uma infinidade de artigos e chamamentos comemorativos ao GOLPE militar que nossa combalida democracia sofreu em 1964, não tenho dúvidas, percebo que "Meu Brasil está doente, ele sofre da Síndrome de Estocolmo".

Síndrome de Estocolmo é o nome dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, ou no caso, toda uma nação, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor. 

Em uma manhã de agosto de 1973, dois assaltantes invadiram um banco, o “Sveriges Kreditbank of Stockholm”, em Estocolmo, Suécia. Após a chegada da polícia, resultando em uma considerável troca de tiros, tal dupla transformou em reféns, por seis dias, quatro pessoas que ali se encontravam.

Ao contrário do que se poderia imaginar, quando os policiais iniciaram suas estratégias visando à libertação dos reféns, esses recusaram ajuda, usaram seus próprios corpos como escudos para proteger os criminosos e, ainda, responsabilizaram tais profissionais pelo ocorrido. Um deles foi ainda mais longe: após sua libertação, criou um fundo para os raptores, com o intuito de ajudá-los nas despesas judiciais que estes teriam, em consequência de seus atos.

Tal estado psicológico particular passou então a ser chamado de “síndrome de Estocolmo”, em homenagem ao referido episódio. Ao contrário do que se imagina, ele não é tão raro quanto pensamos, e não se resume somente a relações entre raptores e reféns. Escravos e seus senhores, sobreviventes de campos de concentração, aqueles submetidos a cárcere privado, pessoas que participam de relacionamentos amorosos destrutivos, e até mesmo algumas relações de trabalho extremas, geralmente permeadas de assédio moral; podem desencadear o quadro. Em todos esses casos, são características marcantes: a existência de relações de poder e coerção, ameaça de morte ou danos físicos e/ou psicológicos e um tempo prolongado de intimidação.

Nesse cenário de estresse físico e mental extremos, o que está em jogo inconscientemente é a necessidade de autopreservação por parte do oprimido, aliada à ideia, geralmente errônea, de que, de fato, não há como escapar daquela situação. Assim sendo, ele inicialmente percebe que somente acatando as regras impostas é que conseguirá garantir pelo menos uma pequena parcela de sua integridade.

Aos poucos, a vítima busca evitar comportamentos que desagradem seu agressor, pelo mesmo motivo pontuado anteriormente; e também começa a interpretar seus atos gentis, educados, ou mesmo de não violência como indícios de uma suposta simpatia da parte dele a ela. Tal identificação permite a desvinculação emocional da realidade perigosa e violenta a qual está submetida.

Por fim, a vítima passa a encarar aquela pessoa com simpatia, e até mesmo amizade – a final de contas, graças à sua “proteção”, ela ainda se encontra viva. No caso de pessoas sequestradas, mais um agravante: tal indivíduo é geralmente a sua única companhia!

A história registra um caso em que, uma moça, de boa família, sequestrada por grupo terrorista, após prolongado cativeiro, acabou aderindo à causa de seus algozes, transformando-se em novo militante e cometendo os mesmos crimes que eles.

Durante praticamente 30 anos, vivemos no Brasil sob as incertezas de um regime totalitário, em que assistimos muitos de nossos amigos, parentes, professores, CAMARADAS ou, como de costuma dizer "nunca antes neste país", companheiros, desaparecerem, retirados do seio de suas famílias, assassinados em Petrópolis, nos porões do DOI-CODI, esquartejados, enterrados em Perus, jogados na represa de Avaré, incinerados como lixo, na usina das "Memórias de Uma Guerra Suja".

Vimos pais e mães serem privados de seus filhos e outros filhos serem privados de seus pais.

Segundo o "Tuminha", a bem da verdade, no DOPS do "Tumão", nem todos os presos eram torturados. Lá, alguns tomavam água de coco, liam jornal e comiam mortadela.

Não importa.

O importante é que, por muitos anos, sofrendo das agruras de um regime totalitário, que como todos os outros, de direita ou esquerda, de cima ou de baixo, nazista, fascista, stalinista, chavista, fidelista, etc, acabamos sofrendo desta doença.

Pior, estamos ensinando nossos filhos que isto foi bom.

Não foi.

Nosso futuro é incerto, os desafios são enormes, o trabalho é árduo, mas é somente pelo caminho democrático, participativo e responsável que poderemos virar a página e seguir adiante como uma nação livre e soberana.

Nada temos a comemorar, só a lamentar.

Tudo o que de bom foi construído neste período, teria sido melhor construído se o fosse livremente.

Professor Orosco
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terça-feira, 11 de março de 2014

PARMÊNIDES - SOBRE A NATUREZA


     Valendo-me do fato de ter citado Parmênides em minha última publicação, dada a importância deste personagem que viveu aproximadamente entre 530 e 450 a.C., sinto-me compelido a explicitar um pouco de sua obra, tecendo um breve comentário sobre seu poema, Sobre a Natureza.
     Diante do florescer daquela ciência que os gregos desenvolveram, que nós chamamos filosofia, alguns filósofos marcaram sobremaneira sua passagem pela história.
     Entre os primeiros, que tentaram romper com os mitos, muitas vezes recorrendo a eles, a quase totalidade valia-se de exemplos das coisas materiais conhecidas, percebidas, para explicar seus pontos de vista, suas opiniões.
     Parmênides, em seu poema "Sobre a Natureza" inovou no método, introduzindo o hábito de expor argumentos, valendo-se de metáforas e marcando sua posição, radicalmente contrária à defendida por Heráclito, para quem tudo era transitório ou movimento.
     Parmênides negava o movimento defendendo sua posição, que ficou conhecida por dois princípios lógicos fundamentais: 
     O princípio de identidade, o ser é o ser, e o princípio da não contradição, não ser, não é.
     Em outros termos, se o ser é e pode ser pensado e dito, então o ser é ele mesmo, e será impossível que seu negativo, o nada ou não ser, também seja e possa ser pensado e dito.
     Para eleger o ser como objeto de sua argumentação, Parmênides acabou criando aquilo que conhecemos como ontologia (estudo ou conhecimento do ser).
     Seu poema, descreve de forma metafórica uma experiência de renúncia e de revelação, apresentando como conteúdo principal, aquilo que foi revelado, a via da verdade.
     Contrapondo-se a este caminho, ele explora a via da opinião.
      A distância fundamental entre os dois caminhos está em que, no primeiro, a via da verdade, o homem se deixa conduzir apenas pela razão e é, então, levado à evidência de que "o que é, é, e não podia deixar de ser".
     No segundo caminho, a via da opinião, pelo fato de se atentarem para os fatos empíricos, as informações obtidas pelos sentidos, o homem não chegaria à verdade e à certeza, permanecendo no nível instável das opiniões.
     Neste poema, ele associa o caminho da verdade, da razão, à luz do dia, onde a luz desnuda o mistério.
     O caminho da opinião é simbolizado pela noite, cuja escuridão esconde a realidade e nos induz a imaginar e a mistificar.
     Para compreender a beleza e a profundidade deste poema, atrevo-me a apresentar uma breve transliteração, dos versos iniciais, convidando o leitor a fazer a sua, no restante do poema.

Parmênides - 

     Éguas que me levam, a quanto lhes alcança o ímpeto, cavalgam, quando numes levaram-me a adentrar uma via loquaz, que leva por toda a cidade quem sabe à luz; por ela era levado; pois por ela, mui hábeis éguas me levavam puxando o carro, mas eram  moças que dirigiam o caminho.

     O eixo, porém, nos meões, impelia um toque de flauta incandescente (pois, se ambos os lados, duas rodas giravam comprimindo-os) porquanto as filhas do sol fustigassem a prosseguir e abandonar os domínios da Noite para a luz, arrancando da cabeça, com as mãos, os véus.

     Lá ficam as portas dos caminhos da Noite e do Dia, pórtico e umbral de pedra as mantém de ambos os lados, mas, em grandiosos batentes, moldam-se elas, etéreas, cujas chaves alternantes quem possui é Justiça rigorosa.

     As moças, seduzindo com suaves palavras, persuadiram-na, atenciosamente, a que lhes retirasse rapidamente o ferrolho trancado das portas; estas, então, fizeram com que o imenso vão dos batentes se escancarasse girando os eixos de bronze alternadamente nos cilindros encaixados com cavilhas e ferrolhos; as moças, então, pela via aberta através das portas, mantém o carro e os cavalos em frente.

     E a deusa, com boa vontade, acolheu-me, e em sua mão minha mão direita tomou, desta maneira proferiu a palavra e me saudou:
     Ó jovem acompanhado por aurigas imortais, que, com cavalos, te levam ao alcance de nossa morada, Salve! ...

Em nossas palavras:

     Os anos que acumulo em minha jornada, com o entusiasmo de minha juventude, conduziram-me, depois de um período de encantamento, à maturidade alcançada pela experiência.
     Pelos mais belos anos, no vigor da juventude, a educação me mostrava o caminho do conhecimento.

     Meu aprendizado doía em meus ouvidos, pendendo entre a razão e a opinião, compelido para a luz da razão pelo conhecimento, que me afasta da ignorância, abrindo-me os olhos a novos saberes.

     Aí está a verdade que separa os caminhos do conhecimento e da ignorância , escorada em uma sólida construção; a verdade eterna, trancada atrás de uma porta, da qual a Sapiência é a chave para abrí-la.

     Na busca da verdade se dirige o conhecimento, amparado pela razão, que desnuda o saber.
     E a verdade se mostra, revelando a grande distância do caminho a ser percorrido, repleto de armadilhas e aparências.
     Aí, com a verdade, a educação conduz o aprendizados dos alunos.

     E a sabedoria me recebeu, amparando minha velhice, dizendo-me:
     Benvindo jovem estudante, que me alcançou através dos anos. ...


Professor Orosco
    


     

O ESPÍRITO DA FILOSOFIA MEDIEVAL

     Para que se possa iniciar o processo de compreensão do espírito da filosofia medieval, torna-se necessário, antes, tecer uma breve recordação da filosofia grega, de Parmênides a Aristóteles.
     Parmênides elaborou o princípio da identidade, o que é, é, e não pode deixar de ser.
     Elaborou também o princípio da não contradição: se o que é, é, o seu contrário, o não ser, não é, e, portanto, não pode ser.
     Este conhecimento se mostra necessário quando tentamos compreender a lógica, que tem tudo a ver com a validade, de Aristóteles, que se interessava pelas proposições categóricas (quantificadas).
     Para ele, uma proposição, um enunciado, precisava ter sentido e apresentar um valor de verdade, verdadeiro ou falso, ou seja, precisava afirmar ou negar alguma coisa.
     Assim, quando analisamos todas as premissas de um argumento e as confrontamos com a conclusão, podemos inferir a validade da argumentação.
     Se todos os valores de verdade forem verdadeiros, a tautologia se faz presente; se todos forem falsos, a contradição se mostra evidente e, quando parte do argumento se mostra possivelmente verdadeiro e parte possivelmente falso, a contingência se manifesta, despertando a dúvida, a possibilidade de ser e de não ser.
     Desta forma, quando subimos pelos galhos da árvore de Porfírio, compreendemos a contingência dos seres e, a partir desta compreensão, intuímos a existência de um Ser, maior do que tudo que possa ser pensado ou dito, segundo Santo Anselmo, ou causa primeira, a causa não causada, segundo São Tomas de Aquino.
     Um Ser que, para comprovar sua ação causal, doa algo de si ao sujeito causado, algo como aquilo que a genética já comprovou quando analisa a descendência dos seres, por exemplo.
     Neste caso, sua substância.
     Em outras palavras, para que uma causa se mostre evidente, precisa ceder algo que tem, tornando-se a raiz da sua própria causalidade.
     A ciência, que tem seu ponto de partida baseado em axiomas, raramente ou quase nunca se interessa pela justificação do ser e do movimento, assim como da causalidade, o que não é o caso da filosofia, que busca alcançar o conhecimento da causa primeira e princípio de todas as coisas.
     Não é o caso da religião, particularmente do pensamento teocêntrico cristão na Idade Média, para quem o Ser é Deus, a causa primeira, criadora de todas as coisas e de si mesma.
     Uma religião que, em seu antropomorfismo, defende que a capacidade de intuir este ato criador, dentre todas as coisas que percebemos na natureza, é exatamente a qualidade que nos foi doada no ato da criação.
     E, desta forma, compreender que a causalidade se manifesta por uma ideia pré concebida do ato que se consuma, no espírito de quem age ou faz, assim como reconhecer a nossa incapacidade para criar, limitada a poder combinar apenas o que já existe ou foi criado.
     O homem só causa na medida em que ele é, e, como nada é anterior ao Ser, não poderá tentar ir além dele.
     Como Ser que criou tudo, que criou a si mesmo, Deus, de forma soberana e livre, só quer a si, só necessita de si, e é em relação a si que quer todo o resto, permitindo-nos por analogia e por sua infinita bondade, experimentar o seu Bem.
     É pela bondade que permite aos seres serem, que permite que sejam causa de outras causas.
     É por sua bondade que participamos de sua potência e vontade, desfrutando de sua glória.
     É somente por analogia que nos assemelhamos a ele, que proporcionalmente podemos ser causa de outras causas, compreendendo que a finalidade disto está no âmago do seu próprio ser, na sua perfeição.
     Com estas palavras podemos, portanto, dizer, que esta Idade Média, foi tudo, menos a Idade das Trevas.
     Concluindo que, apesar dos absurdos abusos e atrocidades cometidas por motivos político/religiosos do período, que a antecederam e que continuaram até nossos dias, a Idade Média foi, filosoficamente falando, muita rica e cheia de luz.

Professor Orosco

Baseado na obra de Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

PAPO CABEÇA

No retorno às aulas, no dia de hoje, tivemos a oportunidade de participar como ouvinte de um belo papo cabeça, orquestrado pelo professor Domingos Zamagna, sobre as origens do conhecimento humano. Segundo sua cronologia, em determinado período do nosso desenvolvimento na cadeia evolutiva, o animal que precedeu ao bicho homem começou a questionar as coisas, a manifestar desejos, a planejar ações primárias. Este período, onde a Consciência era Arcaica, não éramos muito mais que animais em fase de descobrimento, e dizer, éramos como que irracionais. Passamos depois à época da Consciência da Magia, esta entendida como uma tentativa de identificar e canalizar as forças da natureza em proveito próprio. Neste nível de consciência não funcionava o plano da liberdade individual, pois ela trabalhava com o determinismo. Depois, passamos para o período da Mitologia, uma narrativa, onde a estória vivenciada individualmente era explicada através de um mito. Cifrado e datado, o mito, dada a sua característica, permitia o exercício da liberdade individual. Para poder compreendê-lo, torna-se necessário encontrar a chave hermenêutica que vai desmistificá-lo, que vai separar, retirar o logos do mito, e dizer, onde nasceu a filosofia. Desprezar os mitos é o mesmo que jogar fora uma importante fonte do conhecimento humano. Passamos, na fase moderna, ao nível da consciência racional, onde nos empoderamos dos recursos mentais, tomamos a matemática como linguagem e nos sentimos dominadores do mundo. Finalmente, agora em uma fase mais avançada ainda, passamos a compreender que, de certa forma, ainda vivemos, de forma simultânea, todos os níveis de consciência anteriores. Afinal, não abrimos mão, não nos libertamos da consciência da magia, recorrendo a amuletos, crucifixos, orações (Santo Antonio para casar, São Longuinho para encontrar coisas perdidas), elevar a mão aos céus para encontrar Deus, que em princípio está na altura de nossos olhos, dentro dos olhos de um irmão; das crendices de mau agouro, amarrar a boca do sapo, a macumba, o vodu, etc. Continuamos presos a mitos, com medo de passar à noite em frente ao cemitério, ou passar por baixo de uma escada, gato preto, saci pererê, caipora, Iara, mula sem cabeça, medo que uma descoberta arqueológica libere algum espírito antigo e maligno, etc. Nós, que na era da consciência racional, consumimos a energia requerida para mover um carro de 3 toneladas para deslocar uma massa humana de 80 quilos, que cortamos árvores para fazer papel onde imprimimos campanhas contra o desmatamento e, por aí afora. Eu estava sentindo falta. Em suma, o ano promete. Professor Orosco

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

ESTUDANDO NIETZSCHE

BUSCANDO COMPREENDER SUA OPINIÃO SOBRE AS MULHERES.

Nietzsche escreveu:

A mulher quer se tornar independente: e com esse fim ela começa a esclarecer os homens acerca da "mulher em si" - isto pertence aos piores progressos do afeamento geral da Europa. Pois quantas coisas não trarão à luz essas deselegantes tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! 
A mulher tem razões demais para o pudor; na mulher se esconde muito de pedante, superficial, doutrinário, mesquinho-arrogante, mesquinho-desenfreado e imodesto - basta estudar o seu trato com as crianças! -, e que no fundo, até agora, foi reprimido e domado da melhor maneira pelo temor ao homem. Aí, se alguma vez for permitido ao "eterno-tedioso na mulher" (paródia de um dos versos finais de Fausto, de Goethe, "O Eterno-Feminino / Puxa-nos para cima") - ela é abundante nisso! - ousar aparecer! Se ela começar a desaprender a sua astúcia e arte, da graça, do jogo, de afugentar  preocupações, de aliviar e não tomar a sério, se ela começar a desaprender radical e profundamente a sua habilidade sutil para apetites agradáveis! Já agora se fazem ouvir vozes femininas que, por santo Aristófanes!, são de dar medo: com uma clareza médica falam, ameaçadoras, sobre o que a mulher quer do homem em primeiro e último lugar. Não é de um mau gosto extremo que a mulher de disponha de tal maneira a se tornar científica? Até agora o esclarecimento foi, por felicidade, um assunto dos homens, um dom dos homens - algo que ficava "entre nós"; e é preciso, afinal, em relação a tudo aquilo que as mulheres escrevem acerca "da mulher", conservar uma boa dose de desconfiança sobre se a mulher realmente quer o esclarecimento acca de si - e se pode querer... Se com isso a mulher não busca um novo enfeite para si - estou certo em pensar que o enfeitar-se pertence ao eterno feminino? -, bem, então ela quer provocar medo: - talvez, com isso, ela queira domínio. Mas ela não quer verdade: que importa à mulher a verdade! Nada é, desde o princípio, mais alheio, mais contrário, mais hostil à mulher do que a verdade - sua grande arte é a mentira, sua mais elevada ocupação, a aparência e a beleza. Admitamo-lo, nós, homens: respeitamos e amamos na mulher precisamente essa arte e esse instinto:  nós, para quem as coisas são pesadas e que para o nosso alívio gostamos da companhia de criaturas entre cujas mãos, olhares e delicadas loucuras a nossa seriedade, a nossa gravidade e profundidade, quase se parece uma loucura. Por fim coloco a pergunta: mesmo uma mulher alguma vez atribuiu profundidade a uma cabeça de mulher, justiça a um coração se mulher? E não é verdade que, de um modo geral, "a mulher" foi até agora, na maior parte das vezes, desprezada pelas próprias mulheres - e de modo algum por nós? - Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através do esclarecimento: como foi cuidado e uma proteção masculina para as mulheres quando a Igreja decretou: mulier taceat in ecclesia! (que a mulher esteja calada na igreja)
Na Primeira Epístola aos Coríntos [14,34], o apóstolo Paulo escreve: "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei".
Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender a mui eloquente Madame de Staël: mulier taceat in politicis! - e penso é um verdadeiro amigo das mulheres quem hoje lhes grita: mulier taceat de muliere!
...
A imbecilidade na cozinha; a mulher no papel se cozinheira; a apavorante irreflexão com que é tratada a alimentação da família e do chefe da casa! A mulher não compreende o que significa o alimento: e quer ser cozinheira! Se a mulher fosse uma criatura pensante, deveria ter descoberto, na condição de cozinheira há milênios, os fatos fisiológicos mais importantes e, do mesmo modo, teria dominado as artes curativas! Através de péssimas cozinheiras - através da completa ausência de razão na cozinha, o desenvolvimento do homem foi retardado por muito tempo, prejudicado da maneira mais grave: mesmo hoje as coisas não estão muito melhores. Um sermão para moças de boa família.
...
Em nenhuma época o sexo frágil foi tratado com tal consideração por parte dos homens como na nossa [...] Querem mais, aprendem a exigir, acabam por achar esse tributo de consideração já quase ofensivo, prefeririam a competição por direitos, até a luta, propriamente: em resumo, a mulher perde o pudor. Acrescentemos logo que ela também perde o gosto. Ela desaprende a temer o homem: mas a mulher "que desaprende o temor" renuncia aos seus instintos mais femininos.[...] Onde quer que o espírito industrial tenha triunfado sobre o espírito militar e aristocrático, a mulher agora aspira à independência econômica e jurídica de um caixeiro. "A mulher na condição de caixeiro", eis o que está escrito sobre os portões da sociedade moderna que se forma. Enquanto assim se apodera dos novos direitos, ambiciona se tornar "senhor" e escreve o "progresso" da mulher em suas bandeiras e bandeirolas, consuma-se com clareza assustadora o contrário: a mulher regride. [...] Há estupidez nesse movimento, uma estupidez quase masculina, diante da qual uma mulher bem constituída - que é sempre uma mulher inteligente - se ruboriza dos pés à cabeça. [...] Todavia, há um número suficiente de estúpidos amigos das senhoras e corruptores de mulheres dentre os asnos doutos do sexo masculino que recomendam à mulher se desfeminilizar dessa maneira e imitar todas as imbecilidades das quais padece o "homem" na Europa, a "masculinidade" européia [...] O que inspira respeito pela mulher, e com bastante frequência medo dela, é sua natureza, que é "mais natural" que a do homem, sua genuína, astuciosa agilidade de animal de rapina, sua garra de tigre sob a luva, sua ingenuidade no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o inapreensível, vasto, errante de seus apetites e virtudes...
  
                            Além do bem e do mal, sétima parte, 232 a 239

Nietzsche demonstra, à primeira vista, uma visão preconceituosa e chauvinista com relação à mulher, o que, irremediavelmente marcou sua reputação.
No entanto, se buscarmos compreender sua forma sarcástica e irônicade escrever, seus traços principais, veremos que ele tece uma crítica, não à mulher, mas ao método feminino, ao desejo daquelas que, querendo equiparar-se ao homem, buscam agir racionalmente, deixando de lado seus dotes naturais, sua malícia, sua perspicácia e beleza, enfim, sua astúcia, optando pelo confronto (tal qual um imã, onde as polaridades iguais se repelem), onde, invariavelmente perdem, frente à força bruta, uma característica dos fracos, ou seja, masculina.
Ele as critica por agirem como um general que, diante da maior e mais importante das batalhas, opta por armar suas tropas com arcos e flechas, deixando seus canhões adormecidos.
Ele nos faz recordar que, o homem, embora um animal racional, quando o assunto é relacionamento, é o que menos se vale da  racionalidade, agindo sempre por um instinto hormonal.
Assim, quando a mulher, abandona seu lado feminino, feromonal, tão agradável e sedutor ao homem, equipara-se a ele e faz com que este busque o feminino, em outro lugar, ainda que em outro homem.
Nietzsche critica a mulher que, alcançando a razão e o conhecimento, não sabe o que fazer com eles, desperdiçando a oportunidade de sacramentar sua natural supremacia sobre os homens.

Professor Orosco.